sábado, 17 de março de 2012


Condenação da Administração à prática de um acto devido: origem e pressupostos


Antes da previsão deste instituto, tendo por base uma época em que o Direito Administrativo era especialmente marcado por actos discricionários e ablativos[1], entendia-se que se os tribunais condenassem a Administração à prática de actos estariam a violar o princípio da separação de poderes que era alvo de uma interpretação onde se confundia julgar com administrar considerando que «“condenar” a Administração era a mesma coisa que praticar os actos em vez dela ou que “substituir” a actuação das autoridades administrativas pela dos tribunais»[2]. Esta ideia, aliada ao sistema de Contencioso que vigorava, de mera anulação, determinava que o particular não tinha como se defender de uma omissão indevida ou de um acto ilegal praticados por parte da Administração.
Com o surgimento do estado social (e com a atribuição aos particulares de direitos subjectivos invocáveis face ao Estado e de uma Administração maioritariamente prestadora) começou a ser necessário alterar o funcionamento e o entendimento que se tinha do princípio da separação de poderes facultando assim, aos particulares, um meio de defesa que permitisse impor à Administração uma actuação quando ela o devesse fazer e não o tivesse feito ou o tivesse feito de forma ilegal. Contudo, esta prática não conseguiu ser corrigida com a entrada em vigor da LPTA e só a revisão constitucional de 1997 é que previu a possibilidade de os administrados poderem ver reconhecido o direito à determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos (com a mesma redacção que o actual 268 nº4 CRP). Posteriormente, com a entrada em vigor do CPTA, a doutrina discutia qual seria o verdadeiro alcance dessa disposição entendendo o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva que podia haver formulação do pedido de condenação tanto no âmbito da acção para reconhecimento de direitos como no âmbito de um contencioso de anulação. Depois surgiu o regime dos artigos. 66 e ss. CPTA e passou a ser indiscutível a admissibilidade de pedidos de condenação da Administração à prática de actos administrativos.
É uma modalidade de acção administrativa especial. Constitui uma das principais manifestações da mudança de paradigma na lógica do Contencioso Administrativo que, ao passar da mera anulação para a plena jurisdição, deixa de estar limitado na sua tarefa de julgamento.
No entendimento hoje aceite, condenar a Administração à prática de actos administrativos devidos, decorrentes da preterição de poderes legais vinculados (que corresponde à tarefa de julgar) é completamente diferente de o tribunal praticar actos em vez da Administração. Já, no que respeita ao poder discricionário que a Administração tem, não é bem assim. Este poder é um modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas que são da responsabilidade da Administração. No entanto este não é um poder subtraído ao princípio da legalidade e também não é um poder livre, decorrendo desta ideia que é possível o controlo jurisdicional dos respectivos parâmetros, na medida dos aspectos vinculados a que a Administração esteja adstrita, no âmbito dos poderes discricionários.
Recuando um pouco para esclarecer o funcionamento do Contencioso Administrativo à época é importante salientar que vigorava o recurso directo de anulação pelo que a condenação da Administração só era admitida através da ficção do “acto tácito de indeferimento”. Mas como é que funcionava então a condenação da Administração com base neste modelo de base francesa? Entendia-se que, decorrido um prazo sem que a Administração decidisse, se formava um acto tácito de indeferimento ou seja, presumia-se que a pretensão tinha sido negada pela Administração. Só assim, havendo uma “decisão”, o particular podia defender-se. Havia então um recurso de anulação que a ser procedente eliminava aquele “acto” da Administração, entendendo-se que decorria daí a obrigação de a Administração praticar o acto contrário mas seria ela a decidir e não o tribunal a imiscuir-se nas funções administrativas.
Em alternativa a esta ficção vai surgir, na Alemanha, a acção de condenação no cumprimento de um dever da Administração decorrente de dois factores:
·         Europeização do Contencioso Administrativo;
·         Alerta da doutrina para a inutilidade da anulação dos actos negativos.

Aquando da reforma de 84/85 discutiu-se se Portugal devia optar por um entendimento mais próximo da matriz francesa optando por uma acção de declaração eventualmente cumulada com sanção compulsória para impelir a Administração a cumprir ou por um entendimento de origem alemã materializado numa acção condenatória da Administração. Foi esta a ideia que foi transposta para o nosso ordenamento: art. 69º LPTA (acção para reconhecimento dos direitos e interesses legalmente protegidos).
Não obstante, só com a revisão constitucional de 97 se estabelece, de forma expressa, para assegurar o princípio da tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares (previsto no 268 nº4 CRP), a possibilidade de determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos.
Existem assim duas modalidades de acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido, consoante esteja em causa a necessidade de obter a prática:
·          De um acto administrativo ilegalmente omitido; ou
·         De um acto administrativo ilegalmente recusado.
Em ambos os casos o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento (se tiver havido) ou seja, o direito subjectivo do particular a uma determinada conduta da Administração, correspondente a uma vinculação legal de agir, ou de actuar de uma determinada maneira (art. 66 nº2).

“O que significa (…) que (…) o tribunal vai apreciar a concreta relação administrativa existente entre o particular e a Administração de modo a determinar o próprio conteúdo do “acto devido”, julgando acerca da existência (e do alcance) do direito do particular e, consequentemente, determinando o conteúdo do comportamento da Administração juridicamente devido”[3].
O legislador resolveu a questão do “conflito de pedidos” dando prevalência ao pedido de condenação sobre o de anulação: 51/4 CPTA. Desta forma, não se coloca com a mesma acuidade em Portugal, a questão muito debatida na Alemanha de saber quando é que deve ter lugar a acção de anulação e a acção para cumprimento de um dever.
Para que possa haver condenação da Administração à prática do acto devido é necessário que tenha havido a preterição de uma vinculação legal. Surge aqui, novamente, o problema da discricionariedade característica da actuação da Administração. Entende o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva que é possível identificar duas principais modalidades de sentenças resultantes do pedido de condenação à prática do acto devido:
·         Aquelas que correspondem ao exercício de poderes vinculados (ou também nas chamadas situações de redução da discricionariedade a zero) e cuja sentença determina o conteúdo que o acto administrativo deve ter (sentença de condenação em sentido estrito);
·         Aquelas que correspondem aos poderes discricionários em que o tribunal deve indicar a “forma correcta” de exercício do poder discricionário (modalidade inspirada nas “sentenças indicativas” alemãs).

Quais os pressupostos desta acção de condenação?
1.      Tem de ter havido uma omissão de decisão ou a prática de um acto administrativo de conteúdo negativo, situações que estão previstas nas alíneas do art. 67º CPTA. No entanto, no entendimento do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva, podem ser reconduzidas a duas situações:
a)      A existência de uma omissão administrativa ou seja, tendo havido requerimento do particular, a Administração não tenha decidido no prazo legalmente estabelecido: al. a). Até à consagração deste regime, a alternativa era, passado o prazo legalmente previsto, considerar-se indeferidas as pretensões[4] em questão para permitir ao particular socorrer-se dos meios de impugnação. Actualmente, com a possibilidade da condenação à prática do acto da Administração, o instituto previsto no art. 109º CPA (indeferimento tácito) deixa de fazer sentido, devendo ser, no entendimento do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva e citando Prof. Dr. Aroso de Almeida, tacitamente revogado, devendo entender-se que, passado o prazo sem que tenha havido decisão, o particular tem direito de “lançar mão da tutela adequada”.
E se for uma situação de deferimento tácito deve afastar-se a possibilidade de condenação da Administração? No entendimento do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva não, e embora tendencialmente sejam decisões favoráveis aos particulares devemos deter-nos com especial atenção em duas situações:
i)                    Quando o deferimento tácito não corresponder integralmente às pretensões do particular devendo, nessa medida, ser considerado desfavorável.
ii)                  Quando o deferimento tácito aconteça em relações jurídicas multilaterais e em relação a algum(s) dele(s) seja desfavorável.

b)      A existência de um acto de conteúdo negativo: als. b) e c) e que pode resultar da recusa da prática do acto bem como da recusa de apreciação do pedido.

2.      Legitimidade das partes: a este propósito, convém referir que, tanto os sujeitos privados como os sujeitos públicos, têm legitimidade mas as questões que mais dúvida levantam são as que dizem respeito à legitimidade do Ministério Público bem como do actor popular.
Quanto ao Ministério Público estão fixados alguns limites à sua legitimidade no art. 68º nº1 c) CPTA. O Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva entende que é necessário efectuar uma interpretação correctiva desta disposição em razão do espírito do sistema uma vez que é patente uma contradição na medida em que, tanto as omissões como os actos da Administração de conteúdo negativo têm no seu objectivo tutelar direitos e interesses dos particulares. Ora, não faz sentido que, servindo para proteger os direitos dos particulares se atribua, sem mais e em todas as situações, legitimidade ao Ministério Público. Na omissão tem de haver um pedido do particular nos termos dos artigos 67 nº1 a) CPTA e 9º CPA. Desta forma, “só se deve considerar admissível a intervenção do Ministério Público quando tenha sido emitido um acto administrativo de conteúdo negativo mas já não quando se esteja perante uma qualquer omissão administrativa[5] porque o comportamento omissivo tem de ter na sua base o pedido do particular. Já o acto administrativo de conteúdo negativo, atendendo aos interesses em jogo, é mais gravoso na medida em que há uma violação da legalidade.
Quanto ao actor popular é do entendimento do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva que não devia ser de admitir, pese embora, tenhamos de, já que as normas existem, lidar com elas e interpretá-las da melhor forma. A al. d) do nº1 do 68º CPTA parece não impor limitações à legitimidade (ao contrário do que acontece com o Ministério Público) mas a melhor forma de harmonizar as situações contempladas pela lei passa, precisamente, por, à semelhança do regime estabelecido para o Ministério Público, considerar que as mesmas limitações valem para o actor popular. É também de entender que, à semelhança do que foi tecido a propósito da legitimidade do Ministério Público, só deve o actor popular possuir legitimidade para os actos de conteúdo negativo e não para as omissões.
3.      Prazos: previstos no art. 69º CPTA. Vão de 3 meses a 1 ano mas são agora entendidos de forma diferente porque se a parte não apresentar o pedido no prazo que lhe cabia mas se houver razões justificativas para a não apresentação tempestiva é ainda assim admissível, flexibilizando-se o acesso aos tribunais[6].

Bibliografia
·         SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, págs.377 a 411.
·         Proença, André Rosa Lã Pais - As duas faces da condenação à prática do acto devido. Lisboa, 2005. Tese apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa. Págs. 3 a 9.
 


[1] De acordo com Freitas do Amaral são “aqueles que impõe a extinção ou a modificação do conteúdo de um direito” (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, 8ª reimpressão da edição de 2001, pág. 255).
[2] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, págs. 377 e 378.
[3] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, págs. 386 e 387.
[4] Isto é, formava-se um indeferimento tácito.
[5] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, pág. 406.
[6] À semelhança do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 25 de Janeiro de 2007 – processo nº00236.


Leonor Catarina Costa Nunes, 17394

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