domingo, 18 de março de 2012

Responsabilidade civil extra-contratual da Administração pública: competência dos tribunais administrativos

Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Cível, Acórdão de 25 Mar. 2010
Relator: João Moreira do Carmo.
Processo: 281/08
Jurisdição: Cível
Colectânea de Jurisprudência, N.º 221, Tomo II/2010
Ref. 4373/2010

Sumário 1:

Compete à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação da gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.




Sumário 2:
i) Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente;

ii) Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados, sendo da sua competência material julgar acção de reivindicação;

iii) Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de responsabilidade extracontratual imputada a um Município e a uma Junta de Freguesia;

iv) Se em acção de reivindicação, para a qual é competente o tribunal comum, for aditado pedido cumulativo de indemnização, contra pessoas colectivas de direito público, por responsabilidade extracontratual das mesmas, para o qual é competente o tribunal administrativo, verifica-se cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória conducente à sua absolvição da instância, quanto a tal pedido.
Texto
I - Relatório
1.[J] e mulher, [M], residentes na Sertã, intentaram contra P., S.A., com sede em Lisboa, Município da S, com sede Sertã, e Junta de Freguesia de A, com sede na, Sertã, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, pedindo sejam os RR condenados a:
A- A reconhecer que os AA são donos e legítimos possuidores de prédio que identificam, e que este prédio inclui a parcela de terreno onde está instalada antena "mini link", pertença da 1ª ré;
B- A retirar do terreno dos AA a antena mini link, restituindo-lhes aquele prédio livre e devoluto;
C- A absterem-se da prática de quaisquer actos perturbadores do exercício do direito de propriedade dos AA;
D- A pagar, solidariamente, aos AA, a título de indemnização pelos danos patrimoniais, decorrentes da ocupação abusiva do seu prédio desde 1.7.2006 até 30.4.2008, a quantia de 3.300 €, acrescida de juros de mora à taxa legal;
E- E ainda desde 30.4.2008 até que lhes seja restituído livre e devoluto o referido prédio, a quantia de 150 € mensais, actualizável anualmente, a liquidar em execução de sentença;
F- A pagar, solidariamente, a título de indemnização por danos morais a quantia de 800 €;
G- Tudo acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal para os juros civis, desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em suma, ser a proprietária de determinado prédio, que identifica, a sua ocupação pela ré P,SA, com a instalação e montagem de um antena de telecomunicações, denominada "mini link", autorizada pela ré Junta de Freguesia, que cedeu tal terreno à ré P,SA, no âmbito de um Acordo de Cedência, celebrado entre estas duas entidades, e com o correspondente licenciamento do réu S, sem que os AA tivessem tomado conhecimento prévio ou autorizado tal ocupação, sabendo os RR que o prédio indicado era dos AA.
Com tal actuação violaram o direito de propriedade dos AA, devendo desocupar tal prédio e indemnizá-los pelos danos patrimoniais e morais causados.
A ré P,SA contestou, dizendo ter actuado a coberto do Acordo de Cedência de terreno celebrado com a Junta de Freguesia e licenciado pelo Município.
A Junta de Freguesia não contestou.
O Réu Município, além de impugnar, deduziu a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, alegando que perante os pedidos de condenação do réu no pagamento de indemnização e na abstenção da prática de comportamentos, a decisão sobre os mesmos compete aos Tribunais Administrativos, nos termos do artigo 2º, n.º 2, da Lei 15/2002 de 22.2.
Os AA pronunciaram-se quanto a tal excepção no sentido da sua improcedência, invocando, em resumo, que formulam primeiramente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam, sendo os demais pedidos consequência deste, pelo que, a competência para a apreciação do conflito, por ser atinente ao direito de propriedade sobre imóveis, cabe ao tribunal da situação dos bens. E que a questão jurídica suscitada nos autos não se reconduz a qualquer das situações previstas no referido artigo 2º, n.º 2 da Lei 15/2002.
Foi proferida decisão que julgou procedente tal excepção, e absolveu todos os réus da instância.
2.Os AA interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:
a)Face aos pedidos formulados na acção esta não configura a efectivação de responsabilidade extracontratual, mas antes é uma acção de reivindicação;
b)Sendo os tribunais judiciais os competentes para julgar a presente causa, nos termos do art.º 66º, do CPC, e não o contencioso administrativo, já que a violação do direito de propriedade de um particular, seja por um privado seja por entidade pública ou Estado, deve ser sempre defendido junto dos tribunais comuns;
c) E é assim mesmo que subsidiariamente seja peticionada a condenação em indemnização de entes públicos, e portanto se aprecie a responsabilidade extracontratual destes;
d) A decisão proferida violou os arts.º 66º, do CPC, 18º, da LOTJ, 4º, nº1, h), da Lei 13/2002, de 19.2, e 2º, da Lei 15/02 de 22.2, devendo ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal da Sertã o competente materialmente.
Não houve contra-alegações.
II - Factos Provados
Os factos provados são os que resultam do atrás relatado.
III - Do Direito
1.Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts.º 685º-A, e 684º, nº3, do CPC).
Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.
-Competência material do tribunal.
2.1.À partida cumpre referir que tem constituído entendimento invariável da doutrina e jurisprudência, o de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor, atendendo-se ao direito que o autor se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido.
"Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente" - Ac. do STJ, de 15.1.04, Proc.03B3846, in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, entre muitos outros, Ac. do STJ, de 9/05/95, CJ, 1995, 2º-68º, da Rel. Porto, de 7.11.00, CJ, T.5, pág.184, e da Rel. Guimarães, de 16.6.04, Proc.961/04.1, in www.dgsi.pt.
Dos artigos 66º do C.P.C. e 18º da L.O.F.T.J. decorre que "São da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".
Assim, como se afirma na decisão recorrida, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério da atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual - cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, 1994, pág.76 e 77.
No caso concreto, face à causa de pedir invocada pelos autores e aos pedidos por si formulados, nomeadamente os indicados acima sob A e B, em defesa do direito de propriedade que se arrogam, e cuja violação imputam aos réus, é indiscutível estarmos perante uma típica acção de reivindicação, prevista no art.º 1311º, do CC, para a qual é manifestamente competente o tribunal comum.
Na verdade "Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados" - Ac. do STJ, de 13.5.04, Proc.04A1213, no mesmo site.
De modo que no caso em apreço, perante a apontada acção de reivindicação, e a imputada violação do direito de propriedade dos AA, por banda de todos os réus, para conhecimento de tal acção é competente materialmente o Tribunal da Sertã.
2.2. Só que a questão não acaba aqui. Na verdade, na presente acção os autores pedem, também, a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização, conforme pedidos acima indicados sob D a G, correspondente a danos por si sofridos, em consequência da instalação de uma antena propriedade da ré "P.T. Comunicações, S.A." no seu prédio, com a permissão e licenciamento da ré Junta de Freguesia de A e do réu S, que alegadamente sabiam que tal prédio não pertence ao domínio público.
Relativamente a tal pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, com base no art.º 483º, do CC, comum aliás nas acções de reivindicação, é igualmente patente que o Tribunal judicial da Sertã é da mesma maneira competente materialmente em relação à ré P,SA.
2.3. Em relação aos outros dois réus, Junta de Freguesia e Município é que se podem colocar dúvidas.
Segundo o art. 212º, nº 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais "o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".
Importa considerar, apenas, o actual ETAF.
O art. 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19.2, e pela Lei nº 107-D/2003, de 31.12, estatui que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está especificada no art. 4º do ETAF, cujo nº 1 estatui que lhes compete:
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extra-contratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
O art. 4º do ETAF em vigor ampliou o âmbito da jurisdição administrativa, no que respeita à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, de forma a abranger não só os casos em que essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública, mas também de actos de gestão privada praticados no exercício da função pública.
Nesse sentido, decidiu-se no Ac. do T. Conflitos, de 26-10-2006, Proc. 018/06, JSTA00063698, mesmo site, que, nos termos do art. 4º, nº 1, g), do actual ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer por actos de gestão pública (como no ETAF de 1984) quer por actos de gestão privada, praticados no exercício da função pública.
Verifica-se, assim, que face ao ETAF, em vigor, o critério tradicionalmente considerado para distribuir a competência entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais que arrancava da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada passou a ser irrelevante para a determinação da competência material (critério a que se mantiveram agarradas as decisões proferidas nos Acds. da Rel. Évora, 8.3.07, Proc.420/07.3, e Rel. Porto de 18.1.2007, mesmo site, em relação a questão relacionada com a violação do direito de propriedade, para determinar que a competência material era dos tribunais comuns, apesar de haver pedidos indemnizatórios contra pessoas colectivas de direito público, em concreto Município e Junta de Freguesia).
Como se observa no citado acórdão do T. Conflitos de 26.10.06 " Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos."
Tal alargamento da competência é hoje reconhecido maioritariamente pela doutrina, como se respiga do citado aresto.
Assim, Mário Aroso de Almeida, em O Novo Regime Do Processo Nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: "a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público".
E, mais adiante salienta: " Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos", invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.
Igualmente em Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sustentam que "Segundo a actual redacção desta alínea g) - posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as "questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual" dessas pessoas."
E mais adiante: "(...) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na "Exposição de Motivos" da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada"
Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Administrativo I, a pág. 714, salienta que "No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência subjectiva.
Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos".
Podemos, ainda, acrescentar os Profs. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., pág. 36, que escrevem
"Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação da gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa".
Mas se dúvidas houvesse sobre o alcance da referida g) do art.º 4º do novo ETAF, bastaria consultar a " Exposição de Motivos" da Proposta de Lei nº93/VIII que aprova o novo ETAF, e que está referenciada no Ac. do STJ, de 13.3.07, in CJ, T.1, pág.124 e segs., que decidiu pela competência dos tribunais administrativos, de que transcrevemos o seguinte passo "...dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado."
Interpretação, esta, que saiu reforçada com a Proposta de Lei nº102/II (que visou alterar, ligeiramente, a redacção inicial do preceito, para a actual redacção, atrás transcrita) também referenciada no citado acórdão do STJ, e onde se diz que com o único propósito de "esclarecer que o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos se estende à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
Todos os litígios, que é como quem diz, mesmo os decorrentes da sua actividade de gestão privada."
No mesmo sentido, privilegiando um factor de incidência subjectiva, vai o Ac. do STJ, de 12.2.2007, Proc. 07B238, in www.dgsi.
Bem como, "Na anterior redacção do ETAF a distribuição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum fazia-se segundo o princípio geral de que à primeira competia conhecer das relações jurídicas administrativas.
Assim, a primeira regra para discernir a qual das jurisdições competia o processo era a de ver se o litígio respeitava à gestão privada ou à gestão pública da entidade pública envolvida, sendo que na primeira hipótese, aquela em que tal entidade agia como um simples titular de direitos privados igual a qualquer outro, ficava como este sujeita apenas à jurisdição dos tribunais comuns. Estávamos, pois, perante um critério de atribuição de competência de carácter objectivo.
Com as novas regras do ETAF o legislador veio alterar esta disciplina, referindo expressamente a adopção de um novo critério, agora de carácter subjectivo. Ou seja, compete à jurisdição administrativa o julgamento das causas em que o Estado seja parte. E isto independentemente da relação jurídica em litígio ser regulada pelo direito privado ou pelo direito administrativo" - Ac. do STJ, de 27.9.2007, Proc.07B1477, mesmo site.
Considerando, assim, que a presente acção, relativamente ao pedido indemnizatório, tem o seu fundamento na responsabilidade civil extracontratual e que duas das entidades causadoras de danos são pessoas colectivas de direito público, a Junta de Freguesia e o Município, o tribunal materialmente competente para a decidir é o tribunal administrativo.
No caso dos autos não se trata de uma situação de pedidos subsidiários, como os AA afirmam nas suas alegações, já que o pedido subsidiário apenas será tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior - art.º 469º, nº 2, do CPC. Trata-se de um caso de cumulação de pedidos, pois os AA pretendem que todos eles sejam procedentes, embora o pedido indemnizatório, correspondente aos formulados sob D a G, esteja dependente, para o seu conhecimento, do pedido dominante de reivindicação, correspondente aos formulados sob A e B - art.º 470º, nº 1, do CPC.
Ocorre, porém, que para este pedido indemnizatório, quanto aos réus Junta de Freguesia e Município, o tribunal da Sertã não é materialmente competente, pelo que se verificam as circunstâncias que impedem a coligação, previstas no art.º 31º, nº 1, do CPC, relativamente à competência material.
Trata-se, pois, de uma situação de cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, dos indicados dois réus, Junta de Freguesia e Município, relativamente a tal pedido indemnizatório (arts.º 495º e 288º, nº 1, e), do CPC).
2.4.1. Há quem entenda, contudo, que não basta a referida incidência subjectiva, como explanado em 2.3., para determinar a inerente competência material, sendo necessário que se esteja perante uma relação jurídico-administrativa.
Nesta linha vai a seguinte argumentação, que transcrevemos.
"Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.
Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem competentes os tribunais administrativos e fiscais para acções "que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais." (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).
Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos de a responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a comissão do acto ilícito estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.
Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo. Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.
Precisemos então o conceito.
Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia, resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares órgãos da administração.
Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira ("Constituição da República Portuguesa - Anotada", 3ª ed, 815) "Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);
2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza "privada" ou "jurídico civil". Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal."
O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente "Dicionário de Contencioso Administrativo", 2007, p. 117/118) refere:
"Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, (...)
Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º nº 1 alínea g) abrange todos os casos de responsabilidade civil extra contratual da Administração "independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada." e ainda, "as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas" (ob. cit. 115).
Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da Administração (quiçá por os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior sensibilidade, para lidar com questões que envolvam aplicação do direito público e com a Administração pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia gestão pública - gestão privada, tantas vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos doutrinários entre administrativos e civilistas.
Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana de uma Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos." - fim de transcrição, extraída do Ac. do STJ, de 8.5.07, Proc.07A1004, mesmo site.
Parece ser esta, igualmente, a argumentação seguida pelos dois Acórdãos da Rel. Porto, de 14.7.08, indicado site, citados nas alegações dos recorrentes.
Não nos parece ser a melhor interpretação legal, antes nos parece estar contemplada a posição mais lata, exposta em 2.3.
De facto, acompanhando o citado Ac. do STJ, de 13.3.2007, diremos que a menção a relação jurídico-administrativa, feita pelos indicados artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº1, do ETAF, não impede que a lei geral concretize a cláusula constitucional, atribuindo àquela jurisdição casos que verdadeiramente não emergem de relações jurídico-administrativas.
Como refere o Prof. Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, 7ª Ed., pág.116,
" O âmbito da justiça administrativa não se determina, portanto, simplesmente no plano substancial e no plano funcional, com base na Constituição, dependendo ainda do recorte orgânico-processual que seja dado à jurisdição administrativa. E essa definição realiza-se no plano legal, onde, a par de normas que visam concretizar o conteúdo da cláusula geral estabelecida pela Constituição, são de destacar, por um lado, os preceitos que implicam a diminuição por subtracção do âmbito da jurisdição administrativa, e. em contrapartida outros que produzem a sua ampliação, por atribuição aos tribunais administrativos do julgamento de questões que, em princípio, não lhes caberia substancialmente conhecer...".
É esta, de resto, a orientação que sobre o assunto tem vindo a ser acolhida pelo Tribunal Constitucional, que não vê na cláusula geral do nº 3, do art.º 212º, da CRP, o estabelecimento de uma reserva material absoluta de jurisdição para o conhecimento das relações jurídico-administrativas, admitindo-se a remissão para o legislador comum, que poderá excluir desta jurisdição matéria que a ela pertencia em princípio, bem como nela incluir outra que, regra geral, estariam dela afastadas (cfr. Ac. do T. Constitucional, nº 268/03, de 27.5.2003, in Acórdãos do T. Constitucional, Vol. 56, pág. 325).
2.4.2. Mas, mesmo a acompanhar-se aquele raciocínio, conducente a uma posição mais restrita, sempre se dirá que o tribunal administrativo, não deixaria de ser competente, relativamente ao pedido indemnizatório apresentado pelos AA, quanto ao S, pois, segundo o que invocam, a responsabilização do mesmo alicerça-se no licenciamento da instalação de equipamento de telecomunicações fora das condições previstas na lei, por não ter sido autorizada pelos respectivos proprietários. Ora, esta actividade de licenciamento insere-se no âmbito das actividades de gestão pública de tal pessoa colectiva de direito público, a quem está cometida a correspondente função administrativa. Na verdade, o DL 151-A/2000, de 20 de Julho, que estabelece o regime aplicável ao licenciamento de redes e estações de radiocomunicações e à fiscalização da instalação das referidas estações e da utilização do espectro radioeléctrico prevê no seu artigo 20º que a instalação de estações de radiocomunicações e respectivos acessórios, designadamente antenas, carece do consentimento dos respectivos proprietários e dos actos de autorização previstos na lei, nomeadamente os da competência das autarquias (n.º s 1 e 2), sendo que a autorização municipal inerente a tal instalação e funcionamento encontra-se regulada no DL 11/2003, de 18 de Janeiro.
Tal actuação que os autores alegam ter sido desenvolvida pelo réu S, causadora dos danos por si sofridos, integra-se numa relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, por a concessão da necessária autorização municipal ser um acto de gestão pública, pois está no âmbito das competências que lhe são atribuídas por lei.
O que quer dizer, que mesmo seguindo a exposta perspectiva interpretativa, restritiva, no caso em apreço, a competência para o conhecimento do pedido indemnizatório, relativamente ao mencionado Município, pertenceria sempre ao Tribunal Administrativo.
3. Nos termos do art.º 713º, nº 7, do CPC, elabora-se o sumário respectivo:
i) Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente;

ii) Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados, sendo da sua competência material julgar acção de reivindicação;

iii) Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de responsabilidade extracontratual imputada a um Município e a uma Junta de Freguesia;

iv) Se em acção de reivindicação, para a qual é competente o tribunal comum, for aditado pedido cumulativo de indemnização, contra pessoas colectivas de direito público, por responsabilidade extracontratual das mesmas, para o qual é competente o tribunal administrativo, verifica-se cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória conducente à sua absolvição da instância, quanto a tal pedido.
IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se, parcialmente, procedente o recurso dos AA, revoga-se, parcialmente, a decisão recorrida, e em consequência declara-se competente, em razão da matéria, o Tribunal da Sertã, para conhecer de todos os pedidos formulados pelos AA (supra mencionados sob A a G), relativamente à ré P, e dos pedidos formulados pelos AA, supra mencionados sob A a C, relativamente aos réus S e Junta de Freguesia de A.
Custas pelos AA, na proporção de 1/3.
Coimbra, 25.3.2010
João Moreira do Carmo
Alberto Ruço
Judite Pires



Nuno Carvalho
Aluno nº 17913

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