sexta-feira, 9 de março de 2012

Descubra as diferenças




1.      Introdução
O início do percurso evolutivo do contencioso administrativo português pode reconduzir-se – pelo menos no que respeita à origem do modelo – à Revolução Francesa e culmina com a Reforma de 2004 que veio dar forma ao modelo atual. Este percurso caracteriza-se por uma infância repleta de “malformações” e “traumas” que tiveram reflexos ao longo da vida e que foram de difícil “cura”.
Em todo o processo de “cura” houve momentos marcantes (ou milestones), no entanto pode afirmar-se que um dos mais relevantes foi a Reforma de 2004. Essa reforma, ela própria, teve um percurso que se iniciou com a revisão constitucional de 1997 e terminou em janeiro de 2004, quando o atual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) entrou em vigor. Nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva a revisão constitucional de 1997 foi para o contencioso administrativo “uma autêntica revolução coperniciana” na medida em que passa a estar no “centro” a tutela jurisdicional efetiva do particular e não os próprios meios processuais, como até então.
Para compreender a importância da Reforma de 2004, é útil fazer um exercício de comparação do “antes” e do “depois” dessa reforma no que respeita a tutela jurisdicional efetiva do particular face à administração. Este exercício vai implicar uma comparação de alguns dos aspetos do contencioso administrativo que contribuem para essa tutela jurisdicional efetiva, concretamente, os meios processuais ao dispor do particular e os poderes do juiz administrativo.

2.      Os meios processuais ao dispor do particular

Caracterizando o período recente, antes da Reforma de 2004

Generalizando, e por conseguinte correndo algum risco de omitir alguns aspetos importantes, pode afirmar-se que esta fase se caracteriza pelo facto de o principal meio processual ao dispor de um particular, no âmbito do contencioso administrativo, ser o recurso contencioso de anulação de atos administrativos com fundamento na ilegalidade do ato. No entanto, para caracterizar genericamente o contencioso administrativo antes da Reforma de 2004, esta afirmação tem que ser completada com alguns momentos e características marcantes que seguidamente se assinalam.
O DL 256-A/77 de 17 de junho criou o dever de fundamentação dos atos administrativos e o regime das omissões administrativas, o que alargou substancialmente os deveres legais da Administração, alargando reflexamente o âmbito da tutela dos particulares. Este Decreto-Lei criou ainda o regime de execução de sentenças que também constituiu, naquela altura, um avanço substancial na medida em que permitia a condenação da Administração, com sentenças claramente condenatórias e não apenas de anulação.
A Reforma de 1984/85 introduziu novos meios processuais autónomos, concretamente, a ação para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos, a ação para impugnação de regulamentos administrativos e as ações não especificadas. Esta reforma introduziu ainda meios acessórios novos, são eles a intimação para consulta de documentos e certidões e a intimação para um comportamento. Releva-se nesta fase a transformação do recurso de anulação num verdadeiro processo de partes[1] em que o particular pode intervir no processo em igualdade de circunstâncias com a Administração, trazendo para o contencioso administrativo o princípio do contraditório na sua plenitude.
A revisão constitucional de 1989 alterou o art. 268º/4 da CRP, deixando de exigir a definitividade vertical do ato administrativo como pressuposto de recurso contencioso, sendo suficiente a existência da lesividade. No entanto a doutrina do ato administrativo definitivo (horizontal, vertical e materialmente) e executório como pressuposto para o recurso contencioso resistiu até à Reforma de 2004 contra as vozes que a reputavam de inconstitucional.
O Decreto-Lei 134/98, de 15 de maio veio por sua vez, por imposição da obrigação de transposição da Diretiva n.º 89/665/CEE, regular os recursos no âmbito da celebração dos contratos de direito público de obras e de fornecimento.
As providências cautelares tinham, neste período, natureza excecional em homenagem ao privilégio de execução prévia e à presunção de legalidade dos atos administrativos[2].

Depois da Reforma de 2004

Atualmente, relativamente aos meios processuais previstos no CPTA, a tutela jurisdicional efetiva do particular face à Administração tem as características a seguir descritas.

-        O sistema dualista, a ação administrativa comum e ação administrativa especial.
A ação administrativa especial, prevista no art.46º e ss. do CPTA, tem por objeto a impugnação de atos administrativos, na condenação na prática de atos devidos por parte da administração e em pedidos de declaração de ilegalidade de regulamentos ou da omissão de regulamentos devidos.
A ação administrativa comum, prevista no art.37º e ss. do CPTA,  tem por objeto litígios no âmbito da jurisdição administrativa que não sigam a ação administrativa especial.

-        Os processos urgentes.
Os processos que se referem a contencioso eleitoral, contencioso pré-contratual, intimação para prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões, intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias e providências cautelares são, em conformidade com o disposto no art. 36º do CPTA, urgentes e autónomos. Ilustrativo destes processos urgentes é por exemplo o regime do contencioso pré-contratual, que está previsto nos art. 100º 103. do CPTA, com os prazos bastante apertados previstos no art. 102º do CPTA. Ou ainda, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, prevista no art. 109º e ss., na qual, segundo o art. 111º/1 do CPTA, “Em situações de especial urgência, em que a petição permita reconhecer a possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou garantia, o juiz pode encurtar o prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior ou optar pela realização, no prazo de quarenta e oito horas, de uma audiência oral, no termo da qual decidirá de imediato”.

-        As Providências Cautelares.
As Providências Cautelares, previstas no art.112º do CPTA, dependem de uma causa principal (art. 113º do CPTA). A Reforma trouxe várias inovações neste âmbito, nomeadamente, a adoção de um meio processual único para as diversas medidas cautelares, sem prejuízo das normas específicas para certos tipos de pedidos, conforme os art.112º e ss. e os art. 128º e ss. do CPTA. Não menos importante é a presunção de veracidade dos factos invocados pelo requerente quando o requerido não os conteste, conforme o art. 118º/1, do CPTA. Ou ainda, os critérios de decisão previstos no art. 120º do CPTA (os critérios periculum in mora fumus boni iuris) e por fim, a antecipação da causa principal prevista no art. 121º do CPTA.

-        O processo executivo.
O processo executivo está no CPTA regulado nos art. 157º e ss.. Segundo o que aí se dispõe, as sentenças dos tribunais administrativos proferidas contra particulares seguem o regime do CPC, as que são proferidas contra a Administração seguem o disposto no CPTA. Assim, relativamente a estas últimas, o processo executivo no âmbito do contencioso administrativo pode ter uma das seguintes finalidades:
o   Execução para prestação de factos ou coisas (art.162º e ss. do CPTA);
o   Execução para pagamento de quantia certa (art.170º e ss. do CPTA);
o   Execução de sentenças de anulação de atos administrativos (art. 173º e ss. do CPTA).

      Ficou assim completada, no que respeita os meios processuais, a transformação de um modelo contencioso tendencialmente objetivista que visava a defesa da legalidade, num modelo subjetivista, dirigido à tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

3.      Os poderes do juiz administrativo
Um passo significativo na direção da jurisdicionalização e subjetivação do contencioso administrativo e simultaneamente no sentido de um claro reforço dos poderes do juiz administrativo foi aquele que foi dado pela revisão constitucional de 1989, ao prever uma jurisdição administrativa distinta da comum. A revisão constitucional de 1997 vai, ao consagrar “um sistema de plena jurisdição, em que o juiz goza de todos os poderes necessários e adequados à proteção plena e efetiva dos direitos dos particulares,…[3], reafirmar o rumo tomado em 1989. Tudo isto – após um longo período de inação e avanços lentos – o legislador ordinário incorporou Reforma de 2004.
Após a Reforma de 2004, e olhando para trás, pode achar-se que se alcançou uma fase de quase-perfeição evolutiva do contencioso administrativo ou de plena tutela dos direitos dos particulares face à Administração. No entanto, olhando melhor, nomeadamente para o art. 24º/1 do ETAF, verifica-se que continuam a existir “privilégios de foro”[4] para o julgamento em primeira instância de causas que envolvam, por exemplo, atos, regulamentos e outras atuações administrativas emanadas do Primeiro Ministro e do Conselho de Ministros, atribuindo a competência de as conhecer exclusivamente à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Ou seja, se se entender que a plena tutela dos direitos dos particulares implica igualdade plena de particulares e Administração perante a Justiça, conclui-se que  ainda há caminho pela frente. Aqui está ainda, afinal de contas, um constrangimento aos poderes do juiz administrativo, herdado do passado, que segundo alguns críticos destes  “privilégios de foro” pode dar origem a uma maior politização daquelas decisões.

4.      Conclusão

Aparentemente a Reforma de 2004 resolveu todos os problemas que eram apontados ao contencioso administrativo no período anterior.  Porém, na minha opinião, persistem alguns problemas que estão ainda por resolver.
Não sendo possível neste texto identificar exaustivamente todos os problemas e muito menos pô-los em equação, chama-se a atenção, a título de exemplo, para os poderes do juiz face à discricionariedade administrativa no nosso sistema atual de contencioso administrativo.
Os poderes do juiz administrativo, depois da reforma, estão claramente enunciados no art. 3º do CPTA. São em suma, poderes jurisdicionais plenos, típicos do poder judicial de um Estado de direito democrático moderno. Ressalva-se aqui, porem, uma “pequena / grande” particularidade que vem também expressa no art. 3º/1 do CPTA: “…os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação”. Ou seja, o juiz administrativo não julga da “conveniência ou oportunidade” mas apenas da legalidade da atuação da Administração. Considerando a proliferação nos textos legais de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, com a consequente ampliação dos poderes de autotutela declarativa da Administração – que pelos vistos é insindicável judicialmente – chega-se à conclusão que os poderes do juiz administrativo não são assim tão vastos. Se a isto for adicionado o facto de existir, no nosso sistema constitucional de separação de poderes, alguma promiscuidade entre poder executivo (que dirige a Administração) e poder legislativo – especialmente quando há maiorias absolutas na Assembleia da República – facilmente se pode imaginar que a tutela jurisdicional efetiva dos particulares, na parte que é assegurada pelos poderes atuais dos juízes administrativos, pode ser posta em causa. Claro que aqui está em causa também o princípio da separação de poderes – em nome do qual o juiz apenas pode conhecer da legalidade da atuação administrativa – mas não era em nome desse princípio que se dizia antigamente que “julgar a administração é administrar”?


Bento Matos
Aluno n.º18030


[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p. 198.
[2] ANA GOUVEIA MARTINS,  A Evolução do Contencioso Administrativo na Vigência da Constituição de 1976.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p. 211.
[4] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p. 235.

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