1. Introdução
O início do percurso evolutivo do
contencioso administrativo português pode reconduzir-se – pelo menos no que
respeita à origem do modelo – à Revolução Francesa e culmina com a Reforma de
2004 que veio dar forma ao modelo atual. Este percurso caracteriza-se por uma
infância repleta de “malformações” e “traumas” que tiveram reflexos ao longo da
vida e que foram de difícil “cura”.
Em todo o processo de “cura” houve
momentos marcantes (ou milestones), no entanto pode afirmar-se que
um dos mais relevantes foi a Reforma de 2004. Essa reforma, ela própria, teve
um percurso que se iniciou com a revisão constitucional de 1997 e terminou em
janeiro de 2004, quando o atual Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA) entrou em vigor. Nas palavras do Prof. Vasco Pereira da
Silva a revisão constitucional de 1997 foi para o contencioso administrativo
“uma autêntica revolução coperniciana” na medida em que passa a estar no
“centro” a tutela jurisdicional efetiva do particular e não os próprios meios
processuais, como até então.
Para compreender a importância da Reforma
de 2004, é útil fazer um exercício de comparação do “antes” e do “depois” dessa
reforma no que respeita a tutela jurisdicional efetiva do particular face à administração.
Este exercício vai implicar uma comparação de alguns dos aspetos do contencioso
administrativo que contribuem para essa tutela jurisdicional efetiva,
concretamente, os meios processuais ao dispor do particular e os poderes do
juiz administrativo.
2. Os meios processuais ao
dispor do particular
Caracterizando o período recente, antes da Reforma de 2004
Generalizando, e por conseguinte correndo
algum risco de omitir alguns aspetos importantes, pode afirmar-se que esta fase
se caracteriza pelo facto de o principal meio processual ao dispor de um
particular, no âmbito do contencioso administrativo, ser o recurso contencioso
de anulação de atos administrativos com fundamento na ilegalidade do ato. No
entanto, para caracterizar genericamente o contencioso administrativo antes da
Reforma de 2004, esta afirmação tem que ser completada com alguns momentos e
características marcantes que seguidamente se assinalam.
O DL 256-A/77 de 17 de junho criou o dever
de fundamentação dos atos administrativos e o regime das omissões
administrativas, o que alargou substancialmente os deveres legais da
Administração, alargando reflexamente o âmbito da tutela dos particulares. Este
Decreto-Lei criou ainda o regime de execução de sentenças que também
constituiu, naquela altura, um avanço substancial na medida em que permitia a
condenação da Administração, com sentenças claramente condenatórias e não
apenas de anulação.
A Reforma de 1984/85 introduziu novos
meios processuais autónomos, concretamente, a ação para o reconhecimento de
direitos e interesses legalmente protegidos, a ação para impugnação de
regulamentos administrativos e as ações não especificadas. Esta reforma
introduziu ainda meios acessórios novos, são eles a intimação para consulta de
documentos e certidões e a intimação para um comportamento. Releva-se nesta
fase a transformação do recurso de anulação num verdadeiro processo de partes[1] em que o particular pode intervir no
processo em igualdade de circunstâncias com a Administração, trazendo para o
contencioso administrativo o princípio do contraditório na sua plenitude.
A revisão constitucional de 1989 alterou o
art. 268º/4 da CRP, deixando de exigir a definitividade vertical do ato
administrativo como pressuposto de recurso contencioso, sendo suficiente a
existência da lesividade. No entanto a doutrina do ato administrativo
definitivo (horizontal, vertical e materialmente) e executório como pressuposto
para o recurso contencioso resistiu até à Reforma de 2004 contra as vozes que a
reputavam de inconstitucional.
O Decreto-Lei 134/98, de 15 de maio veio
por sua vez, por imposição da obrigação de transposição da Diretiva n.º
89/665/CEE, regular os recursos no âmbito da celebração dos contratos de
direito público de obras e de fornecimento.
As providências cautelares tinham, neste
período, natureza excecional em homenagem ao privilégio de execução prévia e à
presunção de legalidade dos atos administrativos[2].
Depois da Reforma de 2004
Atualmente, relativamente aos meios
processuais previstos no CPTA, a tutela jurisdicional efetiva do particular
face à Administração tem as características a seguir descritas.
- O sistema dualista, a
ação administrativa comum e ação administrativa especial.
A ação administrativa especial, prevista
no art.46º e ss. do CPTA, tem por objeto a impugnação de atos administrativos,
na condenação na prática de atos devidos por parte da administração e em
pedidos de declaração de ilegalidade de regulamentos ou da omissão de
regulamentos devidos.
A ação administrativa comum, prevista no
art.37º e ss. do CPTA, tem por objeto litígios no âmbito da jurisdição
administrativa que não sigam a ação administrativa especial.
- Os processos urgentes.
Os processos que se referem a contencioso
eleitoral, contencioso pré-contratual, intimação para prestação de informações,
consulta de documentos ou passagem de certidões, intimação para defesa de
direitos, liberdades e garantias e providências cautelares são, em conformidade
com o disposto no art. 36º do CPTA, urgentes e autónomos. Ilustrativo destes
processos urgentes é por exemplo o regime do contencioso pré-contratual, que
está previsto nos art. 100º 103. do CPTA, com os prazos bastante apertados
previstos no art. 102º do CPTA. Ou ainda, a intimação para proteção de
direitos, liberdades e garantias, prevista no art. 109º e ss., na qual, segundo
o art. 111º/1 do CPTA, “Em situações de especial urgência, em que a petição
permita reconhecer a possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito,
liberdade ou garantia, o juiz pode encurtar o prazo fixado no n.º 1 do artigo
anterior ou optar pela realização, no prazo de quarenta e oito horas,
de uma audiência oral, no termo da qual decidirá de imediato”.
- As Providências
Cautelares.
As Providências Cautelares, previstas no
art.112º do CPTA, dependem de uma causa principal (art. 113º do CPTA). A
Reforma trouxe várias inovações neste âmbito, nomeadamente, a adoção de um meio
processual único para as diversas medidas cautelares, sem prejuízo das normas
específicas para certos tipos de pedidos, conforme os art.112º e ss. e os art.
128º e ss. do CPTA. Não menos importante é a presunção de veracidade dos factos
invocados pelo requerente quando o requerido não os conteste, conforme o art.
118º/1, do CPTA. Ou ainda, os critérios de decisão previstos no art. 120º do
CPTA (os critérios periculum in mora e fumus boni
iuris) e por fim, a antecipação da causa principal prevista no art. 121º do
CPTA.
- O processo executivo.
O processo executivo está no CPTA regulado
nos art. 157º e ss.. Segundo o que aí se dispõe, as sentenças dos tribunais
administrativos proferidas contra particulares seguem o regime do CPC, as
que são proferidas contra a Administração seguem o disposto no CPTA. Assim,
relativamente a estas últimas, o processo executivo no âmbito do contencioso
administrativo pode ter uma das seguintes finalidades:
o Execução para prestação de factos ou
coisas (art.162º e ss. do CPTA);
o Execução para pagamento de quantia certa
(art.170º e ss. do CPTA);
o Execução de sentenças de anulação de atos
administrativos (art. 173º e ss. do CPTA).
Ficou assim completada, no que respeita os meios
processuais, a transformação de um modelo contencioso tendencialmente
objetivista que visava a defesa da legalidade, num
modelo subjetivista, dirigido à tutela dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos particulares.
3. Os poderes do juiz
administrativo
Um passo significativo na direção da
jurisdicionalização e subjetivação do contencioso administrativo e
simultaneamente no sentido de um claro reforço dos poderes do juiz administrativo
foi aquele que foi dado pela revisão constitucional de 1989, ao prever uma
jurisdição administrativa distinta da comum. A revisão constitucional de 1997
vai, ao consagrar “um sistema de plena jurisdição, em que o juiz goza de
todos os poderes necessários e adequados à proteção plena e efetiva dos
direitos dos particulares,…”[3],
reafirmar o rumo tomado em 1989. Tudo isto – após um longo período de inação e
avanços lentos – o legislador ordinário incorporou Reforma de 2004.
Após a Reforma de 2004, e olhando para
trás, pode achar-se que se alcançou uma fase de quase-perfeição evolutiva do
contencioso administrativo ou de plena tutela dos direitos dos particulares
face à Administração. No entanto, olhando melhor, nomeadamente para o art.
24º/1 do ETAF, verifica-se que continuam a existir “privilégios de foro”[4] para
o julgamento em primeira instância de causas que envolvam, por exemplo, atos,
regulamentos e outras atuações administrativas emanadas do Primeiro Ministro e
do Conselho de Ministros, atribuindo a competência de as conhecer exclusivamente
à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Ou
seja, se se entender que a plena tutela dos direitos dos particulares
implica igualdade plena de particulares e Administração perante a Justiça,
conclui-se que ainda há caminho pela frente. Aqui está ainda, afinal
de contas, um constrangimento aos poderes do juiz administrativo, herdado do
passado, que segundo alguns críticos destes “privilégios de
foro” pode dar origem a uma maior politização daquelas decisões.
4. Conclusão
Aparentemente a Reforma de 2004 resolveu
todos os problemas que eram apontados ao contencioso administrativo no período
anterior. Porém, na minha opinião, persistem alguns problemas que estão
ainda por resolver.
Não sendo possível neste texto identificar
exaustivamente todos os problemas e muito menos pô-los em equação, chama-se a
atenção, a título de exemplo, para os poderes do juiz face à discricionariedade
administrativa no nosso sistema atual de contencioso administrativo.
Os poderes do juiz administrativo, depois
da reforma, estão claramente enunciados no art. 3º do CPTA. São em suma,
poderes jurisdicionais plenos, típicos do poder judicial de um Estado de
direito democrático moderno. Ressalva-se aqui, porem, uma “pequena / grande” particularidade
que vem também expressa no art. 3º/1 do CPTA: “…os tribunais administrativos
julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que
a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação”.
Ou seja, o juiz administrativo não julga da “conveniência ou oportunidade”
mas apenas da legalidade da atuação da Administração.
Considerando a proliferação nos textos legais de conceitos indeterminados e
cláusulas gerais, com a consequente ampliação dos poderes de autotutela
declarativa da Administração – que pelos vistos é insindicável judicialmente –
chega-se à conclusão que os poderes do juiz administrativo não são assim tão
vastos. Se a isto for adicionado o facto de existir, no nosso sistema
constitucional de separação de poderes, alguma promiscuidade entre poder
executivo (que dirige a Administração) e poder legislativo – especialmente
quando há maiorias absolutas na Assembleia da República – facilmente se pode
imaginar que a tutela jurisdicional efetiva dos particulares, na parte que é
assegurada pelos poderes atuais dos juízes administrativos, pode ser posta em
causa. Claro que aqui está em causa também o princípio da separação de poderes
– em nome do qual o juiz apenas pode conhecer da legalidade da atuação
administrativa – mas não era em nome desse princípio que se dizia antigamente
que “julgar a administração é administrar”?
Bento Matos
Aluno n.º18030
[1] VASCO PEREIRA DA
SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p.
198.
[2] ANA GOUVEIA
MARTINS, A Evolução do Contencioso Administrativo na Vigência da
Constituição de 1976.
[3] VASCO PEREIRA DA
SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p.
211.
[4] VASCO PEREIRA DA
SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p.
235.
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