terça-feira, 13 de março de 2012


O JUIZ ADMINISTRATIVO – pela perspectiva da evolução constitucional da Justiça Administrativa e o princípio da tutela jurisdicional efectiva


Em Portugal, até 1976 os tribunais administrativos não eram verdadeiros tribunais, eram órgãos administrativos especiais que exerciam a função jurisdicional. Reputa-se esta factualidade aos resquícios de um trauma de infância difícil que sofreu o Contencioso Administrativo ao longo da sua história. Os traumas da Justiça Administrativa portuguesa, não foram ultrapassados com a Constituição de 1976, sendo que sucessivamente operaram diversas revisões, numa tentativa de cada vez mais ser estabelecido um Contencioso pleno e subjectivo, que só veio a ser realmente concretizado com uma grande reforma no ano de 2002, com a aprovação do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais Administrativos – Lei 13/02, de 19 Fevereiro e Lei 15/02, de 22 Fevereiro, respectivamente[1], que passou a vigorar no ano de 2004.

O texto originário da Constituição trouxe um novo significado à justiça administrativa, pois passou a considerar os tribunais administrativos como verdadeiros tribunais. A jurisdicionalização dos tribunais administrativos aparece relacionada com a consagração do direito fundamental de acesso à justiça administrativa, mas este acesso não era na verdade, inicialmente, um verdadeiro acesso no sentido de protecção dos particulares, mas antes se referia este acesso à garantia constitucional do recurso de anulação, sendo qualquer outro meio processual relacionado com a justiça administrativa consagrada, desconhecido ou ignorado.
Há claramente no texto constitucional uma ideia de compromisso, que pretende conjugar um sistema administrativo jurisdicionalizado com a vertente subjectivista, que acaba até por predominar, mas no entanto, e pelo menos nesta fase inicial, ainda é bastante visível a o modelo clássico de matriz francesa de um contencioso objectivo e limitado.

Torna-se claro que depois de entrar em vigor a nossa Constituição seria necessário torná-la cada vez mais adequada à nova realidade portuguesa, e a uma maior flexibilidade e democratização da separação de poderes de um Estado de Direito.
Surge o DL nº 256/77, de 17 de Junho, crucial na adaptação que se tornava necessária, nomeadamente no que respeita a alguns aspectos relacionados com a actuação e controlo da Administração e de um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado[2]. Do ponto de vista administrativo, surge o dever de fundamentação, essencial na sua transparência, para o que concretamente nos interessa, e bastante relevante na matéria da nossa disciplina, este DL trouxe consigo a regulação da execução das sentenças dos tribunais administrativos. A relevância da regulação da execução das sentenças destes tribunais tem a ver com o facto de estas não mais ficarem dependentes da vontade da Administração, tendo força executória próprias, tal como em qualquer outro tipo de tribunal, reforçando assim a ideia da sua jurisdicionalização, e consagrando a separação entre a Justiça e a Administração.

A revisão constitucional de 82 marcou a protecção jurídica individual, importante no que veremos adiante no que respeita ao “reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, que vem a ser motivo de tutela jurisdicional efectiva com a entrada em vigor do CPTA, anos mais tarde. Ou seja, o que esta revisão veio consagrar mais concretamente foi o acesso à justiça administrativa por parte dos particulares de uma forma muito mais facilitada, caindo por terra, o anterior desígnio do acesso apenas por recurso de anulação. Esta revisão também proporcionou nos anos seguintes uma reforma ao nível do Contencioso, com o surgimento de dois diplomas importantes, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, que apesar de bastante incompletos, das dúvidas que suscitaram e das suas incongruências, foram o ponto de partida para a legislação que viria mais tarde a regular as mesmas matérias mas de forma aperfeiçoada.

Foi em 1989, que a revisão constitucional acentuou marcadamente a transformação do modelo constitucional de Justiça Administrativa, acentuando a sua jurisdicionalização e subjectivação, sendo com esta revisão que se vem a estabelecer que os tribunais administrativos e fiscais constituem uma jurisdição própria (arts.211º e 214º CRP).[3] E outro factor bastante importante foi o facto do direito fundamental de acesso à justiça administrativa se transformar numa verdadeira consagração de um princípio constitucional de protecção jurisdicional plena e efectiva dos particulares (art.268º nºs 4 e 5).

Em 1997 surge mais uma revisão constitucional que vem introduzir novas alterações no âmbito do Contencioso Administrativo, no mesmo caminho das suas antecessoras, e que tinha como objectivos:[4]
1.       Centralizar no processo administrativo o princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares;
2.       Consagrar um sistema de plena jurisdição, em que o juiz goza de todos os poderes necessários e adequados à protecção dos direitos dos particulares, independentemente dos meios processuais que estiverem em causa, ou de se tratar de tutela principal, cautelar ou executiva”;
3.       Incluir um direito fundamental de impugnação de normas.
Isto queria significar, que mesmo antes da mais recente reforma do Contencioso Administrativo, já o legislador constituinte queria consagrar a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, garantida através das sentenças, desde das de simples apreciação até às de condenação.

Este entendimento é crucial para superar o já referido trauma de infância, em que a Administração e a Justiça não tinham as suas competências concretizadas da forma mais correcta, surgindo estas revisões sucessivas como cruciais para o começo da organização do Contencioso da actualidade, com a sua natureza plena e subjectivista, abandonando de vez aquela figura inicial que marcava uma estranha mistura da tentativa de algo novo com um sistema velho de matriz francesa já ultrapassado.

Em 2000 inicia-se um longo procedimento legislativo, após longos debates, anteprojectos, propostas, votações demoradas na Assembleia da República, a vacatio legis que estava prevista pelas leis já aprovadas até Janeiro de 2003, que se viria a prolongar até Janeiro de 2004, e também as alterações que sofreram mesmo antes da sua entrada em vigor, resultaram na grande reforma do Contencioso Administrativo, com o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais Administrativos, já referidos inicialmente e que vieram marcar definitivamente a diferença.

Esta reforma do Contencioso Administrativo veio regular importantes questões relativas à organização dos tribunais administrativos e fiscais, assim como o âmbito da jurisdição administrativa, que até então, e apesar das constantes revisões constitucionais, não tinham sido questões concretas e perfeitamente solucionadas, assim como, ao nível do regime jurídico dos meios processuais adquirindo “relevância e natureza de uma Lei Fundamental, ou de uma Constituição da Justiça Administrativa”[5], daí a ideia da sua “dependência” da Constituição e da Europa, devido à necessidade de aproximar as nossas soluções às do quotidiano da justiça administrativa, e nomeadamente da realidade europeia.

Após esta breve e sucinta análise das sucessivas revisões constitucionais, assim como do culminar da Reforma do Contencioso Administrativo, em que o principal foi evidenciar a evolução que teve a justiça administrativa no nosso contexto constitucional, e com isso perceber o quanto a separação de poderes entre a Administração e a Justiça contribuíram para o nosso actual sistema, e em que actualmente podemos configurar, no que importa para a nossa disciplina, os Tribunais Administrativos em que foi instituído um sistema contencioso norteado pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva, e partindo do ponto inicial que se foca no juiz administrativo, em que “…o juiz dispõe de poderes equivalentes aos outros julgadores…”[6].


Desta forma e tendo como referência uma das principais leis, resultado da grande reforma já referida, é possível verificar no CPTA, onde o seu art.2º[7] consagra o princípio da tutela jurisdicional efectiva, coadjuvado com o art.7º do mesmo Código.
Harmonizando o nº1 deste artigo com o nº4 do art.20º da CRP é possível verificar que o acesso à justiça administrativa passa a compaginar-se com um direito de obter uma decisão judicial, atempadamente, acentuando-se o papel que desempenha a tutela jurisdicional, com a possibilidade de fazer executar e obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, a fim de assegurar o efeito útil da decisão
 Neste mesmo artigo, designadamente no seu nº2, estabelece-se uma enumeração exemplificativa dos poderes de pronúncia em relação a cada tipo de sentença elencada nas suas diversas alíneas. O resultado deste elenco de direitos e interesses legalmente protegidos aos quais correspondem a adequada tutela administrativa, querem significar o reconhecimento ao juiz administrativo de um maior leque de poderes, que até então não dispunha, passando a ter não só poderes constitutivos (alíneas d), h) – sentenças constitutivas de actos e de regulamentos) e declarativos (alíneas a), b), c) – reconhecimento de direitos, de declaração de ilegalidade de normas, etc.), como também poderes condenatórios (alíneas e), f), g), i), j), l)), e até em certos casos, de poderes de substituição.

As alterações dos poderes do juiz administrativo foram muito importantes, primeiro que tudo porque passa a ser “um juiz como qualquer outro”, passando a julgar sem o controlo da Administração, baseando-se no próprio poder jurisdicional atribuído constitucionalmente (art.212º CRP), e no que concerne à lógica constitucional de separação de poderes, no que respeita à separação entre o poder administrativo e o poder judicial, sendo esse o maior resquício de trauma do Contencioso, e que só foi possível superar na totalidade após a Reforma iniciada em 2000, e que não havia sido superado com as anteriores revisões constitucionais. Esta evolução da nossa justiça administrativa permitiu que a própria Administração pudesse passar a ser julgada, efectivando-se a tutela dos particulares, passando a barreira do antigo corolário que “julgar a Administração é ainda administrar”[8].






[1] Martins, Ana Gouveia, Excerto da tese de mestrado
[2] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.185 e ss
[3] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.199 e ss
[4] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.211 e ss
[5] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.233 e ss

[6] Martins, Ana Gouveia, Excerto da tese de mestrado
[7] Artigo 2.º - Tutela jurisdicional efectiva
       1 — O princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão.
       2 — A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter: 
a) O reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo; 
b) O reconhecimento da titularidade de qualidades ou do preenchimento de condições; 
c) O reconhecimento do direito à abstenção de comportamentos e, em especial, à abstenção da emissão de actos administrativos, quando exista a ameaça de uma lesão futura; 
d) A anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência de actos administrativos; 
e) A condenação da Administração ao pagamento de quantias, à entrega de coisas ou à prestação de factos;
f) A condenação da Administração à reintegração natural de danos e ao pagamento de indemnizações;
g) A resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa; 
h) A declaração de ilegalidade de normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo; 
i) A condenação da Administração à prática de actos administrativos legalmente devidos; 
j) A condenação da Administração à prática dos actos e operações necessários ao restabelecimento de situações jurídicas subjectivas;
l) A intimação da Administração a prestar informações, permitir a consulta de documentos ou passar certidões;
m) A adopção das providências cautelares adequadas para assegurar o efeito útil da decisão.

[8] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.251 e ss



Vânia Canhoto
Aluna nº 18449

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