O JUIZ ADMINISTRATIVO – pela perspectiva da evolução constitucional da Justiça Administrativa e o princípio da tutela jurisdicional efectiva |
Em Portugal, até 1976 os tribunais
administrativos não eram verdadeiros tribunais, eram órgãos administrativos
especiais que exerciam a função jurisdicional. Reputa-se esta factualidade aos resquícios
de um trauma de infância difícil que
sofreu o Contencioso Administrativo ao longo da sua história. Os traumas da Justiça Administrativa
portuguesa, não foram ultrapassados com a Constituição de 1976, sendo que sucessivamente
operaram diversas revisões, numa tentativa de cada vez mais ser estabelecido um
Contencioso pleno e subjectivo, que só veio a ser realmente concretizado com
uma grande reforma no ano de 2002, com a aprovação do novo Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais Administrativos –
Lei 13/02, de 19 Fevereiro e Lei 15/02, de 22 Fevereiro, respectivamente[1],
que passou a vigorar no ano de 2004.
O texto originário da Constituição
trouxe um novo significado à justiça administrativa, pois passou a considerar
os tribunais administrativos como verdadeiros tribunais. A jurisdicionalização dos
tribunais administrativos aparece relacionada com a consagração do direito
fundamental de acesso à justiça administrativa, mas este acesso não era na
verdade, inicialmente, um verdadeiro acesso no sentido de protecção dos
particulares, mas antes se referia este acesso à garantia constitucional do
recurso de anulação, sendo qualquer outro meio processual relacionado com a
justiça administrativa consagrada, desconhecido ou ignorado.
Há claramente no texto
constitucional uma ideia de compromisso, que pretende conjugar um sistema
administrativo jurisdicionalizado com a vertente subjectivista, que acaba até
por predominar, mas no entanto, e pelo menos nesta fase inicial, ainda é
bastante visível a o modelo clássico de matriz francesa de um contencioso
objectivo e limitado.
Torna-se claro que depois de
entrar em vigor a nossa Constituição seria necessário torná-la cada vez mais
adequada à nova realidade portuguesa, e a uma maior flexibilidade e democratização
da separação de poderes de um Estado de Direito.
Surge o DL nº 256/77, de 17 de
Junho, crucial na adaptação que se tornava necessária, nomeadamente no que
respeita a alguns aspectos relacionados com a actuação e controlo da
Administração e de um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado[2].
Do ponto de vista administrativo, surge o dever de fundamentação, essencial na sua
transparência, para o que concretamente nos interessa, e bastante relevante na
matéria da nossa disciplina, este DL trouxe consigo a regulação da execução das
sentenças dos tribunais administrativos. A relevância da regulação da execução das
sentenças destes tribunais tem a ver com o facto de estas não mais ficarem
dependentes da vontade da Administração, tendo força executória próprias, tal
como em qualquer outro tipo de tribunal, reforçando assim a ideia da sua jurisdicionalização,
e consagrando a separação entre a Justiça e a Administração.
A revisão constitucional de 82
marcou a protecção jurídica individual, importante no que veremos adiante no
que respeita ao “reconhecimento de um direito ou interesse legalmente
protegido, que vem a ser motivo de tutela jurisdicional efectiva com a entrada
em vigor do CPTA, anos mais tarde. Ou seja, o que esta revisão veio consagrar
mais concretamente foi o acesso à justiça administrativa por parte dos
particulares de uma forma muito mais facilitada, caindo por terra, o anterior desígnio
do acesso apenas por recurso de anulação. Esta revisão também proporcionou nos
anos seguintes uma reforma ao nível do Contencioso, com o surgimento de dois
diplomas importantes, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a
Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, que apesar de bastante
incompletos, das dúvidas que suscitaram e das suas incongruências, foram o
ponto de partida para a legislação que viria mais tarde a regular as mesmas
matérias mas de forma aperfeiçoada.
Foi em 1989, que a revisão constitucional
acentuou marcadamente a transformação do modelo constitucional de Justiça
Administrativa, acentuando a sua jurisdicionalização e subjectivação, sendo com
esta revisão que se vem a estabelecer que os tribunais administrativos e
fiscais constituem uma jurisdição própria (arts.211º e 214º CRP).[3]
E outro factor bastante importante foi o facto do direito fundamental de acesso
à justiça administrativa se transformar numa verdadeira consagração de um
princípio constitucional de protecção jurisdicional plena e efectiva dos
particulares (art.268º nºs 4 e 5).
Em 1997 surge mais uma revisão constitucional
que vem introduzir novas alterações no âmbito do Contencioso Administrativo, no
mesmo caminho das suas antecessoras, e que tinha como objectivos:[4]
1. Centralizar
no processo administrativo o princípio da protecção plena e efectiva dos
direitos dos particulares;
2. Consagrar
um sistema de plena jurisdição, “em que o juiz goza de todos os poderes necessários e adequados à protecção
dos direitos dos particulares, independentemente dos meios processuais que
estiverem em causa, ou de se tratar de tutela principal, cautelar ou executiva”;
3. Incluir
um direito fundamental de impugnação de normas.
Isto queria significar, que mesmo antes da mais recente reforma do
Contencioso Administrativo, já o legislador constituinte queria consagrar a protecção
plena e efectiva dos direitos dos particulares, garantida através das
sentenças, desde das de simples apreciação até às de condenação.
Este entendimento é crucial para
superar o já referido trauma de infância,
em que a Administração e a Justiça não tinham as suas competências
concretizadas da forma mais correcta, surgindo estas revisões sucessivas como
cruciais para o começo da organização do Contencioso da actualidade, com a sua
natureza plena e subjectivista, abandonando de vez aquela figura inicial que
marcava uma estranha mistura da tentativa de algo novo com um sistema velho de
matriz francesa já ultrapassado.
Em 2000 inicia-se um longo
procedimento legislativo, após longos debates, anteprojectos, propostas,
votações demoradas na Assembleia da República, a vacatio legis que estava prevista pelas leis já aprovadas até
Janeiro de 2003, que se viria a prolongar até Janeiro de 2004, e também as alterações
que sofreram mesmo antes da sua entrada em vigor, resultaram na grande reforma
do Contencioso Administrativo, com o novo Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais Administrativos,
já referidos inicialmente e que vieram marcar definitivamente a diferença.
Esta reforma do Contencioso
Administrativo veio regular importantes questões relativas à organização dos
tribunais administrativos e fiscais, assim como o âmbito da jurisdição
administrativa, que até então, e apesar das constantes revisões constitucionais,
não tinham sido questões concretas e perfeitamente solucionadas, assim como, ao
nível do regime jurídico dos meios processuais adquirindo “relevância e
natureza de uma Lei Fundamental, ou de uma Constituição da Justiça
Administrativa”[5],
daí a ideia da sua “dependência” da Constituição e da Europa, devido à
necessidade de aproximar as nossas soluções às do quotidiano da justiça
administrativa, e nomeadamente da realidade europeia.
Após esta breve e sucinta análise
das sucessivas revisões constitucionais, assim como do culminar da Reforma do
Contencioso Administrativo, em que o principal foi evidenciar a evolução que
teve a justiça administrativa no nosso contexto constitucional, e com isso
perceber o quanto a separação de poderes entre a Administração e a Justiça contribuíram
para o nosso actual sistema, e em que actualmente podemos configurar, no que
importa para a nossa disciplina, os Tribunais Administrativos em que foi
instituído um sistema contencioso norteado pelo princípio da tutela jurisdicional
efectiva, e partindo do ponto inicial que se foca no juiz administrativo, em
que “…o juiz dispõe de poderes equivalentes aos outros julgadores…”[6].
Desta forma e tendo como
referência uma das principais leis, resultado da grande reforma já referida, é
possível verificar no CPTA, onde o seu art.2º[7]
consagra o princípio da tutela jurisdicional efectiva, coadjuvado com o art.7º
do mesmo Código.
Harmonizando o nº1 deste artigo
com o nº4 do art.20º da CRP é possível verificar que o acesso à justiça
administrativa passa a compaginar-se com um direito de obter uma decisão
judicial, atempadamente, acentuando-se o papel que desempenha a tutela jurisdicional,
com a possibilidade de fazer executar e obter as providências cautelares,
antecipatórias ou conservatórias, a fim de assegurar o efeito útil da decisão
Neste mesmo artigo, designadamente no seu nº2,
estabelece-se uma enumeração exemplificativa dos poderes de pronúncia em
relação a cada tipo de sentença elencada nas suas diversas alíneas. O resultado
deste elenco de direitos e interesses legalmente protegidos aos quais
correspondem a adequada tutela administrativa, querem significar o reconhecimento ao juiz administrativo de um maior
leque de poderes, que até então não dispunha, passando a ter não só poderes
constitutivos (alíneas d), h) – sentenças constitutivas de actos e de
regulamentos) e declarativos (alíneas a), b), c) – reconhecimento de direitos,
de declaração de ilegalidade de normas, etc.), como também poderes condenatórios
(alíneas e), f), g), i), j), l)), e até em certos casos, de poderes de
substituição.
As alterações dos poderes do juiz
administrativo foram muito importantes, primeiro que tudo porque passa a ser “um
juiz como qualquer outro”, passando a julgar sem o controlo da Administração,
baseando-se no próprio poder jurisdicional atribuído constitucionalmente (art.212º
CRP), e no que concerne à lógica constitucional de separação de poderes, no que
respeita à separação entre o poder administrativo e o poder judicial, sendo
esse o maior resquício de trauma do
Contencioso, e que só foi possível superar na totalidade após a Reforma
iniciada em 2000, e que não havia sido superado com as anteriores revisões
constitucionais. Esta evolução da nossa justiça administrativa permitiu que a própria
Administração pudesse passar a ser julgada, efectivando-se a tutela dos
particulares, passando a barreira do antigo corolário que “julgar a
Administração é ainda administrar”[8].
[1] Martins, Ana Gouveia, Excerto da tese de mestrado
[2] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no
divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.185 e ss
[3] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no
divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.199 e ss
[4] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no
divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.211 e ss
[5] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no
divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.233 e ss
[6] Martins, Ana Gouveia, Excerto da tese de mestrado
[7] Artigo 2.º - Tutela
jurisdicional efectiva
1
— O princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter,
em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado,
cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a
fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou
conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão.
2 — A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:
2 — A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:
a) O
reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de
normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de
disposições de direito administrativo;
b) O
reconhecimento da titularidade de qualidades ou do preenchimento de condições;
c) O
reconhecimento do direito à abstenção de comportamentos e, em especial, à
abstenção da emissão de actos administrativos, quando exista a ameaça de uma
lesão futura;
d) A
anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência de actos administrativos;
e) A
condenação da Administração ao pagamento de quantias, à entrega de coisas ou à
prestação de factos;
f) A condenação da Administração à reintegração natural de danos e ao pagamento de indemnizações;
g) A resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa;
f) A condenação da Administração à reintegração natural de danos e ao pagamento de indemnizações;
g) A resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa;
h) A
declaração de ilegalidade de normas emitidas ao abrigo de disposições de
direito administrativo;
i) A
condenação da Administração à prática de actos administrativos legalmente
devidos;
j) A
condenação da Administração à prática dos actos e operações necessários ao
restabelecimento de situações jurídicas subjectivas;
l) A intimação da Administração a prestar informações, permitir a consulta de documentos ou passar certidões;
m) A adopção das providências cautelares adequadas para assegurar o efeito útil da decisão.
l) A intimação da Administração a prestar informações, permitir a consulta de documentos ou passar certidões;
m) A adopção das providências cautelares adequadas para assegurar o efeito útil da decisão.
[8] Silva, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no
divã da psicanálise, Almedina, 2ªedição – pág.251 e ss
Vânia Canhoto
Aluna nº 18449
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