sábado, 17 de março de 2012

Responsabilidade Civil Extracontratual


Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01008/11
Data do Acordão:23-02-2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
CULPA IN VIGILANDO
DEVER DE VIGILÂNCIA
ILICITUDE
CULPA
DANO
Sumário:I - Sobre o Município, em cujo património se integrava a rede de distribuição de água que compreendia a conduta causadora do acidente, impendia o dever de vigiar e fiscalizar de forma adequada e eficaz as suas condições de segurança e o seu modo de funcionamento de modo a evitar que ela pudesse causar prejuízos.
II - Regra geral incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, regra que é afastada quando exista presunção legal de culpa (487.º/1 do CC). Esta presunção aplica-se à responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas públicas.
III - Todavia, em contadas circunstâncias, a lei faz incidir sobre o lesante a obrigação de provar de que não foi por culpa sua que o acidente e as suas consequências ocorreram. Uma dessas circunstâncias verifica-se no caso em que existe o dever de vigilância sobre animais ou coisas móveis ou imóveis que o lesante tenha em seu poder (art. 493.°/1 do CC).
IV - O que quer dizer que, nesses casos, caberá ao ente público possuidor da coisa demonstrar que empregou todas as providências ao seu alcance para evitar o evento danoso e que este só ocorreu por motivos que lhe escaparam e que não podia evitar e, por conseguinte, que ele se teria verificado ainda que não houvesse culpa sua.
V - A ilicitude, por via de regra, está associada à culpa e, por isso, a mesma só será relevante quando essa reunião ocorrer. Deste modo, provada a violação do dever objectivo de cuidado, isto é, provada a ilicitude importará, ainda, provar que esta se ficou a dever a uma falta que podia e devia ter sido evitada, isto é, que ela se ficou a dever a culpa do agente.
V - O dever de vigilância não comporta a obrigação de representar todos os riscos que a coisa pode provocar mas, apenas e tão só, os riscos prováveis visto ser virtualmente impossível prevenir todos os riscos e é excessivo crer-se que só pela eliminação completa de todos eles se observaria um tal dever.
VI - O rebentamento de uma conduta de água quando a mesma está a ser sujeita a obras é um risco previsível e, até, provável, pelo que se exigia que a Recorrente o representasse e o prevenisse.
Nº Convencional:JSTA000P13819
Nº do Documento:SA12012022301008
Data de Entrada:10-11-2011
Recorrente:CM DE GONDOMAR
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:


Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSOADMINISTRATIVO DO STA:
A……, Lda., com sede na Rua ……, Cabanas, Fânzeres, Gondomar intentou acção declarativa com processo ordinário contra CÃMARA MUNICIPAL DE GONDOMAR pedindo a condenação desta no pagamento (1) da quantia de Esc. 1.016.753$00 de indemnização pelos danos que o rebentamento de uma conduta de distribuição de água de que era responsável lhe causou no armazém e no muro de divisão com rede ao terreno contíguo e (2) da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença relativa aos danos provocados nos materiais armazenados nas suas instalações, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
A Ré contestou para questionar a sua legitimidade – as obras que provocaram aquele rebentamento estavam a ser executadas pelas “B…….” e pelo consórcio C…./C’…… e, por isso, só estes podiam responder pelos peticionados prejuízos - para impugnar parte da factualidade invocada pelo Autor e para afirmar que nenhuma culpa se lhe podia assacar já que, por um lado, dispunha de um corpo organizado de técnicos que procediam à sistemática vigilância do estado de conservação das condutas substituindo as peças danificadas e corrigindo os defeitos visionados e, por isso, não se lhe podia imputar aquele rebentamento e, por outro, a ocorrer responsabilidade ela pertencia à “B…… S.A.” visto ter sido ela quem contratara às obras de duplicação das condutas adutoras e terem sido estas a provocar o dito rebentamento e consequente inundação. Concluiu, assim, pela procedência da matéria de excepção mas que, caso assim se não entendesse, a acção deveria ser julgada improcedente por não provada.
Requereu, ainda, a intervenção principal provocada da D……– Companhia de Seguros, S.A. com fundamento na transferência da sua responsabilidade para esta seguradora por contrato de seguro.
Por despacho de fls. 52/53 foi indeferido o pedido de intervenção principal daquela seguradora mas decidido admitir o seu chamamento a título de intervenção acessória.
Citada, a Interveniente contestou para, além do mais, invocar a prescrição do direito reclamado pela Autora.
No despacho saneador a matéria de excepção - ilegitimidade e prescrição - foi julgada improcedente e foi fixada a matéria assente e a base instrutória da causa.
Realizado o julgamento a acção foi julgada procedente e a Ré condenada no pedido.
Inconformada, a Câmara Municipal de Gondomar recorreu formulando as seguintes conclusões:
1. O tribunal considerou como provado que (1) a conduta foi instalada em 1975 e tem uma vida útil de cerca de cinquenta anos, (2) que em finais de 1997 tiveram início as obras de execução do contrato de empreitada de execução para duplicação da conduta adutora entre o reservatório de Ramalde e o de Pedrouços, (3) nas proximidades da conduta aqui em causa, e (4) que no âmbito da execução da obra de duplicação de conduta de águas foi aberta uma vala onde foram instaladas condutas, havia movimentos de terraplanagem encontrando-se ali retroescavadoras.
2. Assim sendo, e uma vez que entre 1975 e 1997 decorrem 23 anos.
3. Só se consegue explicar a ruptura da conduta pelas particulares circunstâncias do caso concreto - execução no local de obras de duplicação de condutas de água, abertura de vala onde foram instalados condutas e movimentos de terraplanagem.
4. Ou seja, ficou provado que o Recorrente tomou todas as providências possíveis e exigíveis para manter em bom estado de conservação das condutas de água, não podendo afirmar que outra conduta lhe era exigida, que podia e devia ter agido de outro modo.
5. O Recorrente provou que adoptou todas as providências que segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis fossem susceptíveis de evitar o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
6. O recorrente agiu de acordo com o critério legal estabelecido no nos termos do art. 487.°, n.° 2, do C. Civil, ou seja, com a “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”,
7. pelo que não pode estar preenchido o requisito de culpa da responsabilidade por parte do Recorrente.
8. Assim sendo não se comprovou a verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, dado que foi afastada a presunção de culpa e como são de verificação cumulativa os respectivos pressuposto, haverá que conclui-se, em contrário do que foi decidido, que a acção deve improceder.
9. Não se pode por tudo o que ficou demonstrado assacar qualquer responsabilidade à recorrente, por não estarem reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar.
10. Violou, assim, a sentença recorrida os artigos 483.° CC, 487.° n.° 2 CC e 4.º do DL 48051.
Não foram apresentadas contra alegações.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
I. MATÉRIA DE FACTO.
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Na noite de 22 para 23 de Dezembro de 1997, rebentou uma conduta de água, a qual passa próximo da zona industrial de Cabanas, onde se situa um estabelecimento comercial (al. A));
2. A ora Interveniente “Companhia de Seguros E……, S.A.” fundiu-se, por incorporação, com a “D…- Companhia de Seguros, S.A.” (Doc. de fls. 89 a 121 destes autos ) ( al. B));
3. A R. transferiu a responsabilidade civil decorrente de danos causados a terceiros em consequência de inundações provocadas por rupturas de condutas de água para “D…… - Companhia de Seguros, S.A.”, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.° ……, em vigor em 23-12-1 997, sendo que nos termos das Condições Particulares, tal contrato ficou sujeito a uma franquia a cargo da segurada no valor de 10% dos prejuízos indemnizáveis no mínimo de Esc. 20.000$00 (Doc. de fls. 26 e 122-128 destes autos) (al. C)).
4. A A. detém um estabelecimento industrial, sito na Rua ……, Lugar de Cabanas, freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar e que é referido em A) (resposta ao facto 1°);
5. O rebentamento da referida conduta de água provocou inundações nas instalações da aqui A., nomeadamente inundações de água num armazém (resposta ao facto 2°);
6. Destruição de um muro de suporte em betão armado e vedação em rede que serve de divisão com terreno contíguo (resposta ao facto 3°);
7. Tal situação provocou o arrastamento e danificação de alguma matéria-prima (tubos, sacos de spray e tripés ) relativas à actividade produzida pela A. (resposta ao facto 4°);
8. Estroncamento do portão de acesso às traseiras do edifício industrial (resposta ao facto 5°);
9. Com data de 23.12.1997, a Autora subscreveu carta dirigida ao director dos serviços municipalizados de água e saneamento da Câmara Municipal de Gondomar comunicando-lhe o rebentamento de conduta de água próximo da zona industrial e os prejuízos daí advenientes nas suas instalações (inundação no armazém e danos no material aí armazenado, destruição do muro de suporte em betão armado e vedação em rede que serve de meação com terreno contíguo, arrastamento e danificação de matérias primas relativas à sua actividade produtiva, estroncamento do portão de acesso às traseiras do edifício industrial) (resposta ao facto 6°);
10. Com data de 05.01.1998, a Autora subscreveu carta dirigida ao director dos serviços municipalizados de água e saneamento da Câmara Municipal do Porto comunicando-lhe o rebentamento de conduta de água próximo da zona industrial e os prejuízos daí advenientes nas suas instalações (inundação no armazém e danos no material aí armazenado, destruição do muro de suporte em betão armado e vedação em rede que serve de meação com terreno contíguo, arrastamento e danificação de matérias primas relativas à sua actividade produtiva, estroncamento do portão de acesso às traseiras do edifício industrial); mais comunicou que informou os serviços municipalizados de água e saneamento da CM de Gondomar de tal situação e que, após contacto telefónico com os serviços daquela autarquia, a informaram que a situação seria da responsabilidade dos serviços municipalizados de água e saneamento da CM do Porto (resposta ao facto 7°);
11. Com data de 16.01.1998, o director dos serviços municipalizados de águas e saneamento do município do Porto subscreveu carta dirigida à Autora, em resposta à carta de 05.01.1998, informando-a que o assunto em causa não é do âmbito destes serviços, mas sim dos SMAS de Gondomar, dado tratar-se de uma rotura na conduta de 600 mm, que deriva para Gondomar e Valongo, no Lugar de Cabanas, freguesia Fânzeres, concelho de Gondomar (resp. ao facto 8°);
12. O assunto foi colocado pelos SMAS de Gondomar à consideração da Companhia de Seguros D…… (resposta ao facto 9°);
13. Em 8 de Julho de 1998, a A. recebe a informação que os Serviços Municipalizados ou a Companhia de Seguros nada pagariam uma vez que os danos produzidos não tiveram origem em qualquer facto de natureza fortuita, casual, subjacente à própria conduta de abastecimento de água (resposta ao facto 10°);
14. A Autora teve de fazer obras no armazém e reconstruir o muro à sua custa, tendo, para tanto, pago a quantia de Esc. 1.016.753$00 (resposta ao facto 11°);
15. Em finais do ano de 1997, tiveram início as obras de execução do “Contrato de empreitada de execução para duplicação da conduta adutora entre o reservatório de Ramalde e o de Pedrouços” celebrado entre a empresa “B……, S.A.” e o agrupamento formado pelas empresas “C……, SA.” e “C’…… L.da”, em consórcio externo de responsabilidade solidária, o qual “compreende, genericamente, o fornecimento e montagem de tubagens e acessórios, trabalhos complementares de construção civil e electrificação nas caixas dos nós principais, incluindo instalação de tubagem para cabos para telegestão ao longo de 7,6 km de condutas” (resposta ao facto 12°);
16. Nas proximidades da conduta aqui em causa (resposta ao facto 13°);
17. No âmbito da execução da obra de duplicação de condutas de água, (i) Foi aberta uma vala onde foram instaladas condutas; e (ii) Havia movimentos de terraplanagem, encontrando-se ali retroescavadoras (resposta ao facto 15°);
18. Foi instalada em 1975, tendo uma vida útil de cerca de cinquenta anos (resposta ao facto 17°).
II. O DIREITO
O presente recurso dirige-se contra a sentença do TAF do Porto que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a CM de Gondomar, a título de responsabilidade civil extracontratual, a pagar à Autora a quantia de 5.071,54 euros relativa aos danos já contabilizados e a quantia que se viesse a apurar em execução de sentença no tocante aos danos que não fora possível contabilizar provocados pela Ré, às quais acresciam os correspondentes juros legais.
Para decidir desse modo a sentença teve por certo que, na noite de 22 para 23 de Dezembro de 1997, rebentou uma conduta da rede de distribuição de água que passava próximo das instalações da Autora e que, em consequência desse rebentamento, as referidas instalações foram inundadas provocando danos nos materiais que aí estavam armazenados, a destruição de um muro de suporte em betão armado e da vedação em rede que servia de divisão com terreno contíguo e o estroncamento do portão de acesso às traseiras do edifício industrial. E que a Ré era responsável pelo pagamento desses prejuízos já que lhe competia zelar pela manutenção, segurança e modo de funcionamento dessa rede, que estava a seu cargo, e que, sendo assim, estava obrigada desenvolver todas as acções ao seu alcance para cumprir aquele dever de vigilância sob pena de, não o fazendo ou não demonstrando que os danos sempre ocorreriam independentemente dessa vigilância, responder pelos prejuízos causados. E isto porque era “à face da inversão do ónus da prova quanto à ilicitude e culpa que resulta deste art. 493.º n.° 1, do Código Civil que há que apreciar se se verificam os requisitos da responsabilidade civil extracontratual.”
Ora, a Ré não tinha conseguido demonstrar a existência de qualquer das situações referidas na parte final daquela disposição já que falhou na prova dos elementos fundamentais que suportavam a sua defesa visto não ter demonstrado ter “praticado todos os actos adequados a evitar o rebentamento da conduta nem que o rebentamento teria ocorrido mesmo que tais actos tivessem sido praticados, o que significa que a Ré é responsável pelos danos causados pelo rebentamento da conduta referido, como estabelece aquele art.º 493.º, n.° 1, do Código Civil.”
A Câmara Municipal de Gondomar não se conforma com esta decisão já que considera ter provado que tomou todas as medidas necessárias à manutenção do bom estado de conservação das condutas de água sob sua jurisdição adoptando todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, eram susceptíveis de evitar que provocassem prejuízos, e, por isso, que não lhe podia ser exigida outra conduta. Não se verificavam, assim, os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual que podiam conduzir à sua condenação já que, sendo estes de verificação cumulativa e tendo ficado provado que o rebentamento se não ficou a dever a culpa sua, haveria que concluir-se pela improcedência da acção.
Vejamos se litiga com razão.
1. É pacífico estarmos perante uma acção de responsabilidade civil regida pelo disposto no DL 48.051, de 21/11/67, pelo que a Ré será responsável pelo pagamento da pedida indemnização se for demonstrado que os seus órgãos ou agentes praticaram, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, actos de gestão ilícitos e culposos ou omitiram ilícita e culposamente actos que deviam ter praticado e que foi essa conduta a determinar os danos peticionados (vd. seu art.º 2.º/1 do e art.ºs 483.º e seg.s do CC) (Vd., a título meramente exemplificativo, Acórdãos de 16/3/95 (rec. 36.993), de 21/3/96 (rec. 35.909), de 30/10/96 (rec. 35.412), de 13/10/98 (rec. 43.138), de 27/6/01 (rec. 46.977), de 26/9/02 (rec. 487/02, in AD n.º 492, pg. 1.567) de 6/11/02 (rec. 1.331/02), de 18/12/02 (rec. 1.683/02), de 10/03/04 (rec. 1.393/03) e de 7/4/05 (rec. 856/04).).
O que quer dizer que, cumprindo à CM de Gondomar, enquanto titular da rede de distribuição de água nesse concelho - de que fazia parte a conduta que provocou os pedidos danos - zelar pela sua manutenção, segurança e modo de funcionamento por forma a que dela não resultasse perigo, a mesma será responsável pelo pagamento daquela indemnização se da factualidade apurada for possível concluir que (1) violou culposamente esses deveres, (2) que foi essa violação a causar o acidente e (3) que dele resultaram os danos. O que quer dizer que a Ré só terá de indemnizar a Autora se for considerado provado que o seu comportamento se traduziu na prática (ou omissão) de actos ilícitos e culposose que foram eles a causar o acidente de que resultaram os peticionados prejuízos.
2. Consideram-se ilícitos «os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração» (art. 6.º do citado DL 48.051).
Essa ilicitude – que, na prática, se traduz na negação dos valores tutelados pela ordem jurídica (A. Varela “Das Obrigações em Geral, 3.ª ed., vol. I, pg. 483.) - só é, porém, relevante se estiver associada a uma conduta censurável, isto é, estiver associada à culpa, o que significa que a violação das referidas normas, dos princípios gerais ou do dever geral de cuidado não é, por si só, suficiente para fazer nascer a obrigação de indemnizar já que esta só nascerá quando essa violação for culposa, isto é, quando decorrer de um comportamento que podia e devia ter sido evitado e que só não o foi por razões merecedoras de censura. E isto porque “agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.” (A. Varela, “Das Obrigações em Geral, 3.ª ed., vol. I, pg. 571.) A qual “é apreciada nos termos do art.º 487.º do Código Civil” (art.º 4.º do DL 48.051) isto é, na falta de outro critério legal, “pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.” (art.º 487.º/2 do CC).
Não se podendo, pois, falar de autonomização da ilicitude relativamente à culpa em sede de responsabilidade civil extracontratual importa analisar se o comportamento da Ré infringiu as normas legais ou regulamentares e as regras de cuidado a que devia obediência e, ocorrendo essa infracção, se ela se deveu a razões juridicamente reprováveis.
3. Estão em causa os danos decorrentes do rebentamento de uma conduta da rede de distribuição de água do concelho de Gondomar, cuja manutenção e correcto funcionamento estavam a cargo da Ré.
Regra geral incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, regra que só é afastada quando exista presunção legal de culpa (487.º/1 do CC), isto é, quando a lei, em contadas circunstâncias, faz incidir sobre o lesante a obrigação de provar de que não foi por culpa sua que o acidente e as suas consequências ocorreram.
Nestes casos, ao lesado incumbirá provar apenas a chamada base da presunção, entendida como o facto conhecido donde se parte para afirmar o facto desconhecido (art.ºs 349.º e 350.º CC). Trata-se de uma presunção que admite prova destinada a contrariar o facto presumido e, consequentemente, que admite a demonstração de que o direito reclamado não existe. E trata-se de uma presunção que se restringe à culpa e que, por isso, não pode ser alargada à ilicitude.
Presunção que, por força do que se dispõe no art.º 4.º/1 do DL 48.051, se aplica à responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas públicas.
Uma das circunstâncias em que ocorre a inversão do ónus da prova verifica-se no caso em que existe o dever de vigilância sobre animais ou coisas móveis ou imóveis que o lesante tenha em seu poder. Com efeito, nos termos do art. 493.°/1 do CC, “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
A referida inversão assenta, pois, no dever de vigilância que recai sobre aqueles que têm coisas ou animais em seu poder e na presunção de que, tendo estes provocados danos, isso resultou do incumprimento desse dever ou do seu deficiente cumprimento (o que tem a ver com a ilicitude) e no facto disso se ter ficado a dever à forma reprovável como o lesante o encarou já que teve a possibilidade de o cumprir correctamente e não o fez (o que permite formular o juízo de censura em que se traduz a culpa).
O que, revertendo para o caso dos autos, nos obriga a analisar se a Ré provou que agiu correctamente na forma como providenciou a manutenção e segurança da rede de distribuição de água a seu cargo e se, por isso, o rebentamento da conduta ocorreu por motivos que lhe escaparam e que não podia evitar. E isto porque, atento o que se dispõe no transcrito normativo, aquele acidente haverá que atribuir-se ao incumprimento ou ao deficiente cumprimento das normas ou regulamentos que impunham à Ré a manutenção daquela rede em correctas condições operacionalidade e segurança, presunção que só será afastada se ela provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Ou seja, a Ré só poderá evitar a sua condenação se, por um lado, se considerar provado que vigiou devidamente o estado e a segurança da referida rede – isto é, que não praticou qualquer acto ilícito - e, por outro, que não lhe era exigível outro comportamento para além daquele que observou - isto é, que nenhuma culpa houve da sua parte e que os danos sempre ocorreriam.
4. A Recorrente intentou demonstrar aquelas conclusões absolutórias sustentando que a referida conduta tem uma vida útil de 50 anos e que o seu rebentamento ocorreu quando só se tinham cumprido apenas 23 desses 50 anos, querendo com isso significar que o seu período de duração estava longe de estar esgotado e que, por isso, não foi o estado em que ela se encontrava a causar o acidente. Ademais, tinha uma equipa técnica que mantinha a rede de distribuição de água em perfeitas condições de segurança e, por outro lado, o rebentamento só podia ser explicado pelas circunstâncias excepcionais que o rodearam, concretamente pela execução das obras de duplicação de condutas daquela rede e com a abertura de valas e os correspondentes movimentos de terras que tal exigia. Isto é, a Recorrente intentou demonstrar que tomou todas as providências exigíveis para manter em bom estado de conservação aquelas condutas, não se lhe podendo imputar qualquer falta.
Mas tais razões não procedem.
Desde logo, porque estando assente que a conduta onde se deu o rebentamento faz parte da rede de distribuição de água a seu cargo haverá que concluir que a Ré tinha o dever de acompanhar e fiscalizar aquelas obras por forma a que as mesmas não pudessem determinar a produção de quaisquer prejuízos. Dever esse que lhe exigia analisar se elas podiam causar perigo e, prevendo esse perigo, que a obrigava a tomar todas as medidas indispensáveis à sua remoção. Isto independentemente delas estarem a ser executadas por terceiro e de, por isso, ser este o responsável directo e imediato por essa execução.
É certo que este dever de vigilância não comporta a obrigação de representar todos os riscos que a coisa pode provocar visto ser virtualmente impossível prevenir todos os riscos e é excessivo crer-se que só pela eliminação completa de todos eles se observaria um tal dever. “O que aos entes públicos se exige é que representem todos os riscos prováveis e, de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, ainda pudessem caber nas expectativas de um avaliador prudente (vd. os arts. 4º, n.º 1, do DL n.º 48.051, de 21/11/67, e 487º, n.º 2, do Código Civil); e, em seguida, exige-se que tais entes previnam os riscos representados, desde que não haja motivos logísticos ou orçamentais que, «ab extra», o impossibilitem.” – ac deste STA de 29-01-2009 (rec. 966/08).
Ora, o rebentamento de uma conduta de água quando a mesma está a ser sujeita a obras é um risco previsível e, até, provável, pelo que se exigia que a Recorrente o representasse e o prevenisse.
Ora, a Recorrente não conseguiu demonstrar ter cumprido esse dever.
O que nos força a concluir que não elidiu a presunção estabelecida no art.º 493.º/1 do CC parecendo resultar da forma como estruturou a sua defesa que cuidava que, por não ser a executor directa das obras, não só estava desligada da obrigação de as fiscalizar como também que não era responsável pelos danos que elas eventualmente causassem.
O que, como se acaba de ver, não é verdade.
Não há, pois, que censurar o decidido.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em negar provimento ao recurso confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
Sem custas, atenta a isenção da Recorrente.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Luís Pais Borges.


Ricardo Botelho
Aluno 17894 da subturma 2

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