segunda-feira, 7 de maio de 2012

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo: 0125/12
Data do Acordão: 19-04-2012
Tribunal: 2 SECÇÃO
Relator: FERNANDA MAÇÃS
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
Sumário:I - Para determinação da competência hierárquica, à face do preceituado nos artigos 26º, alínea b), e 38º, alínea a), do ETAF de 2002 e artigo 280º, nº1, do CPPT, o que é relevante é que o recorrente, nas conclusões das respectivas alegações de recurso, suscite qualquer questão de facto, manifestando-se em clara discordância com o decidido no que respeita aos juízos de apreciação da prova efectuados pelo Tribunal recorrido.
II - O recurso não versa exclusivamente matéria de direito se nas conclusões do respectivo recurso se questiona a matéria de facto, manifestando-se divergência com o decidido, quer por se enunciar factos não contemplados no probatório, dos quais se pretende extrair consequências jurídicas, quer porque se divirja sobre as ilações ou juízos de facto que o julgador extraiu da factualidade fixada.
Nº Convencional: JSTA000P13999
Nº do Documento: SA2201204190125
Data de Entrada: 03-02-2012
Recorrente: A......, SA
Recorrido 1: FAZENDA PÚBLICA
Votação: UNANIMIDADE
Aditamento:


Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I-RELATÓRIO

1. A………, SA., deduziu impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e respectivos juros moratórios, que foi julgado improcedente.
2. Não se conformando com tal sentença, a A………, SA., interpôs recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo e apresentou as suas Alegações, com as seguintes Conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou totalmente improcedente a impugnação.
B. De acordo com o tribunal a quo, “a operação em causa não pode beneficiar do benefício da neutralidade fiscal pela simples razão de à cisão em causa lhe falecer o pressuposto legal de atribuição aos sócios de partes representativas de capital social das sociedades beneficiárias. E se a operação não cabe no dito regime especial, há-de cair então no regime geral do art. 43 do CIRC”. Além do exposto, entendeu também o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela “que a transferência dos elementos patrimoniais para a esfera das empresas beneficiárias gerou variações patrimoniais positivas que, nos termos do art. 21° do CIRC, não podem deixar de se reflectir nos respectivos lucros tributáveis”.
C. Esta decisão vem em contradição com uma outra, proferida pelo mesmo tribunal, no âmbito do processo n° 281/08.1BEMDL, em que era impugnante a sociedade B………, S.A., e onde estavam em causa os mesmos factos dos presentes autos, bem como a mesma matéria de direito, desta feita relativa à correcção promovida pelos serviços de inspecção tributária na esfera da sociedade que, na operação de cisão-fusão que dá também origem à correcção fiscal aqui discutida, se assume como cindida. Nesta última decisão reconheceu-se que foi produzida prova susceptível de permitir a conclusão segundo a qual “não é condição de aplicação do regime de neutralidade fiscal a atribuição formal ao sócio da sociedade cindida de partes representativas ou participações da(s) sociedade(s) beneficiária(s)”, sendo “irrelevante, para os efeitos da discussão, que haja uma atribuição formal de participação social, uma vez que, dentro da esfera jurídica do accionista, apenas existe uma transferência de participações entre as sociedades de que é dono e não um aumento do valor dessa mesma participação em virtude da operação de cisão/fusão”.
D. Entende a recorrente que a decisão de que vem interposto o presente recurso merece censura, imputando-lhe um erro de julgamento de facto ou de direito.
E. De acordo com a recorrente, o tribunal a quo limitou-se a reiterar aquele que é o posicionamento da Administração fiscal constante, não só do relatório de inspecção fiscal, como da respectiva contestação — entendimento este aqui impugnado —, face às questões jurídicas suscitadas, fazendo tábua rasa de toda a matéria de facto de que foi feita prova — quer testemunhal quer documental — nas instâncias próprias.
F. O tribunal a quo limitou-se, enfim, a repetir as mesmas razões que a Administração fiscal havia tornado públicas no relatório que fundamenta o acto tributário impugnado, razões estas basicamente assentes em falsos pressupostos de sujeição, numa perturbadora incompreensão da matéria de facto e, bem assim e em consequência, numa inevitável má leitura dos argumentos de direito aduzidos.
G. De acordo com a fundamentação do acto de liquidação impugnado (constante do Relatório de Inspecção, da contestação da Sra. Representante da Fazenda Pública e agora do articulado de alegações de recurso apresentado), é imputado à impugnante o não cumprimento de todos os requisitos exigidos para a aplicação do regime especial previsto nos art.ºs 67.° e ss. do Código do IRC.
H. Tal entendimento, todavia, tem subjacente uma errada percepção da matéria factual e errónea aplicação do direito, pelo que as liquidações adicionais em que se projectou são manifestamente ilegais e a sentença recorrida ilegal na percepção que tem do direito mobilizável.
I. De resto, quer a decisão administrativa de correcção tributária quer a sentença de que se recorre, descrevem de forma geralmente fidedigna, nas respectivas fundamentações, os detalhes mais relevantes das operações de cisão-fusão aqui em análise, designadamente a qualificação jurídico-societária que lhes foi conferida no Relatório de inspecção fiscal, os movimentos contabilísticos ocorridos e as alterações delas resultantes, o que denota uma evidente preocupação com o rigor da base factual de onde parte a sua análise jurídico-tributária.
J. Com efeito, a atribuição de acções ao sócio da sociedade cindida, não pode ser considerada como um verdadeiro requisito da aplicação do regime de neutralidade fiscal, como quer a Administração fiscal e como admite o tribunal recorrido.
K. A não verificação de tal requisito em nada influi no objectivo de diferimento da tributação que constitui um dos vértices fundamentais da estrutura do regime de neutralidade fiscal.
L. Os pressupostos e os fins da neutralidade fiscal consignados nos art.° 67.° e seguintes do Código do IRC não saem minimamente beliscados da operação de cisão-fusão em apreço, sem que tenha ocorrido emissão de novas acções.
M. Falta, é certo, na operação de cisão-fusão em causa nos presentes autos, a entrega de acções da sociedade beneficiária (A………) ao sócio (C………) da sociedade contribuidora(B………).
N. Mas percebe-se porquê: é que o sócio (C………) que detinha a 100% a sociedade contribuidora (B………) era exactamente o mesmo que detinha integralmente as participações no capital da sociedade beneficiária (A………), o que tomou obviamente dispensável, por exemplo, a realização de aumentos de capital com emissão de novas acções.
O. Não se verificou, naquela situação, a necessidade de operar com qualquer razão de troca, uma vez que, quer a sociedade contribuidora (B………), quer a sociedade beneficiária dispunham do mesmo accionista, com exclusão de quaisquer outros.
P. Do ponto de vista do accionista único da sociedade contribuidora (C……..), o ingresso dos activos transmitidos no património da sociedade beneficiária (A……..) funcionou, assim, como uma entrada de capital, realizada pelo sócio, que não teve contrapartida na emissão de acções, a qual constitui uma fórmula de reforço dos capitais próprios das sociedades admitida pela doutrina.
Q. Ditas as coisas de outra forma: sendo coincidente o accionista único da sociedade contribuidora e o da sociedade beneficiária, ninguém dispunha de interesse em que o aumento de valor desta última, correspondente ao ingresso dos activos transmitidos, fosse de algum modo representado por novas acções (ou por acções próprias disponibilizadas para o efeito).
R. O ponto é justamente este: o D……… viu ser-lhe recusado o regime de neutralidade da operação de cisão-fusão em que é interveniente a sociedade ora impugnante em virtude de ter adoptado a fórmula simultaneamente mais simples e mais natural, nas suas específicas circunstâncias.
S. Mas se tivesse havido lugar à entrega de acções ao accionista (C………) da sociedade beneficiária (A………) — o que, sendo embora absolutamente inútil e desadequado na operação em causa, poderia realizar-se com a maior facilidade —, já a aplicação do mesmo regime lhe seria reconhecida sem qualquer problema.
T. Ora é justamente a perplexidade causada por esta situação que obriga a que se aprofunde um pouco mais o sentido e a função da referência à atribuição de acções na economia do preceito que se encontra em análise.
U. Na verdade, para os efeitos do art. 67° do Código do IRC, a não ocorrência de atribuição de acções ao sócio da sociedade beneficiária, nos termos referidos, só pode ser determinante para inviabilizar a aplicação do mencionado regime se houver de entender-se que essa atribuição constitui um seu verdadeiro requisito — no sentido de que constitui uma exigência determinada pela respectiva ratio ou por outros objectivos inteligíveis de política fiscal.
V. Deve, por isso, verificar-se, em primeiro lugar, a quem é necessário entregar acções da sociedade beneficiária, do ponto de vista da Administração fiscal. Será que esta considera imperioso que, na cisão- fusão que aspire ao regime de neutralidade, sejam entregues acções a todos e quaisquer sócios da sociedade contribuidora?
W. É fácil de ver que um tal entendimento conduziria a resultados inaceitáveis.
X. A título complementar, verifica-se que, subjacente à tese propugnada pela Administração fiscal e permitida pelo tribunal de primeira instância, está uma violação clamorosa dos princípios da capacidade contributiva e da proporcionalidade, pois numa operação em que não há, demonstradamente, qualquer criação de valor, em que C……… mantém na sua esfera, em todos os momentos, os mesmos activos (nem mais nem menos) com os mesmos custos de aquisição originários, é manifestamente desproporcionado exigir correcções que ultrapassam os € 15.000.000,00.”

3. Não foram apresentadas Contra-alegações.
4. O Ministério Público, junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu Parecer onde se conclui que “(…) As conclusões M.N.O. enunciam factos não contemplados no probatório da sentença, dos quais a recorrente pretende extrair consequência jurídica.
Neste contexto o recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito sendo o STA- SCT incompetente, em razão da hierarquia, para o seu conhecimento e competente o TCA Norte- SCT (arts. 26° al.b) e 38° al.a) ETAF 2002; art.280° n°1 CPPT).

5.Notificadas as partes do Parecer do Ministério Público, veio a recorrente responder, nos termos seguintes:
1) O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, do exercício de 2005.
2) Subjacente àquela liquidação está a diferente consideração que a ora recorrente e a Administração fiscal fazem sobre a aplicação do regime da neutralidade fiscal, ínsita no então vigente artigo 67.° do Código do IRC, a uma operação de reorganização empresarial realizada em 2005 e na qual a aqui recorrente interveio.
3) Sobre esta matéria, na qual se centra a questão a decidir nos autos de impugnação, concluiu o Tribunal a quo que “a operação em causa não pode beneficiar do beneficio da neutralidade fiscal pela simples razão de à cisão em causa lhe falecer o pressuposto legal de atribuição aos sócios de partes representativas de capital social das sociedades beneficiárias. E se a operação não cabe no dito regime eçbecia4 há-de cair então no regime geral do art. 43 do CIRC”.
4) Em suma, concluiu o Tribunal que, na operação concretamente em análise, não estariam reunidos os requisitos para a aplicação do regime da neutralidade fiscal.
5) Ora, sendo esta a questão central apreciada pelo Tribunal a quo e sendo esse, também, o principal fundamento para a improcedência da impugnação, é justamente sobre a sua reapreciação, de índole eminentemente jurídica, que a ora recorrente pugna em sede de recurso — tal como, aliás, resulta das suas alegações.
6) Ao contrário do que defende o ilustre Magistrado do Ministério Público no seu parecer, a questão em apreço nos autos de recurso tem por exclusivo fundamento a reapreciação da matéria de direito — erradamente julgada em primeira instância.
7) Note-se, aliás, em abono do que vem dito, que a aquela decisão judicial vem em contradição com uma outra, proferida pelo mesmo tribunal, no âmbito do processo n° 281/08.1BEMDL, em que era impugnante a sociedade B………, S.A., e onde estavam em causa os mesmos factos, bem como a mesma matéria de direito, desta feita relativa à correcção promovida pelos serviços de inspecção tributária na esfera da sociedade que, na operação de cisão-fusão que dá também origem à correcção fiscal aqui discutida, se assume como cindida.
8) Naquele caso, em que a impugnação foi julgada totalmente procedente, a Fazenda Pública interpôs recurso para a Secção de Contencioso Tributário desse Supremo Tribunal Administrativo, onde viu o seu recurso apreciado e indeferido e a dita sentença confirmada em prol da tese da ali recorrida a cópia do acórdão, já transitado em julgado, que se junta como doc. n.° 1 e cujo conteúdo se reproduz).
9) Do mesmo modo, tal como naquela situação, da sentença proferida em primeira instância foi interposto recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: naquele caso, pela mão do Representante da Fazenda Pública que ali teve decaimento total e, aqui, pela mão da ora recorrente.
10) Por conseguinte, também no caso em apreço nestes autos, conforme resulta do disposto no n.° 1 do art. 280.° e do n.° 1 do art. 282.°, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, deve essa Secção do Contencioso Tributário considerar-se plenamente competente para apreciar o presente recurso.
SEM PRESCINDIR,
11) Caso V. Exas. entendem estar verificada a situação de incompetência em razão da hierarquia que vem invocada pelo ilustre representante do Ministério Público, à cautela, requer-se desde já pelo presente a remessa dos autos ao tribunal declarado competente, nos termos e com os efeitos previstos no n.° 2 do art. 18.° do CPPT.”

6. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTOS

1- DE FACTO
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
“1.O acto de liquidação impugnado (cfr Relatório de Inspecção Tributária) resulta do entendimento sancionado pela Direcção dos Serviços do IVA e do teor dos Despachos n° 36 e n° 37-XVI, de 13.01.2005, do SEAF, segundo o qual à operação de cisão-fusão realizada pelo D……… - em que é interveniente a ora Impugnante - não é aplicável o regime de neutralidade fiscal a que se referem os artigos 67° e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
2.Em causa está, concretamente, a operação de cisão da sociedade E……… - a qual passou a adoptar a designação social de B……… -, na modalidade de cisão-fusão, por destaque das unidades económicas de produção de água com gás e turismo associado e de produção de água lisa para incorporação na sociedade F……… - a qual passou a adoptar a designação social de A……… - e na sociedade C………, respectivamente.
3.De acordo com a Administração Tributária (AT), na medida em que não terá sido observada, na operação de cisão-fusão em referência, a exigência, imposta pela norma das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 67° do CIRC, da atribuição aos sócios de partes representativas de capital social da sociedade beneficiária, e na medida em que a verificação dessa exigência configura uma condição da aplicabilidade do regime de neutralidade, não pode a mesma beneficiar deste regime especial, devendo antes à referida operação aplicar-se o regime geral de tributação.
4.Como consequência, entende a Administração Tributária (AT) que deverá considerar-se que a sociedade contribuidora – B……… - transmitiu os activos destacados ao correspondente valor de mercado, sendo necessário apurar as mais-valias ou menos-valias eventualmente realizadas, nos termos do art. 43° do Código do IRC e que a sociedade beneficiária, aqui impugnante – A……… -, por idêntica razão, terá experimentado uma variação patrimonial positiva, que concorre para a determinação do respectivo lucro tributável nos termos dos n°s 1 e 2 do art. 21° do Código do IRC.
5.Nesta conformidade, a Administração Tributária promoveu a avaliação dos activos destacados da B……… e incorporados na A………, para o que utilizou diversos critérios de avaliação, corrigiu a matéria colectável declarada pela B………, no montante de € 10.612.237,43, correspondente ao saldo apurado das mais e menos-valias fiscais realizadas, e acresceu, nos termos dos n°s 1 e 2 do art. 21° do Código do IRC, ao resultado liquido da A………, a título de variações patrimoniais positivas, o valor de € 10.932.155,32, consubstanciado no aumento da situação liquida da sociedade por efeito do aumento das reservas de reavaliações no montante de € 7.923.565,65 e de resultados transitados no montante de € 3.008.589,67, e o valor de € 13.521.998,76, consubstanciado no efeito da valorização a preços de mercado do activo imobilizado destacado, através do acto de liquidação que aqui se impugna.”

2- DE DIREITO

2.1. A questão prévia da incompetência em razão da hierarquia do STA

Impõe-se, a título prévio, conhecer da questão da incompetência do STA, em razão da hierarquia, suscitada pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal, cujo conhecimento, nos termos do art. 13º do CPTA, deve preceder o de qualquer outra, uma vez que a sua eventual procedência prejudicará, precisamente, a apreciação e o julgamento das demais questões suscitadas no recurso, face ao disposto no nº 2 do art. 16º do CPPT e nos arts. 101º e ss. do CPC.
A competência do STA para apreciação dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários restringe-se, tal como resulta da alínea b) do art. 26º do ETAF, exclusivamente, a matéria de direito, constituindo, assim, uma excepção à competência generalizada do Tribunal Central Administrativo, ao qual compete, nos termos da alínea a) do art. 38º do ETAF, conhecer “dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26º”.
Nesta consonância, prescreve o nº 1 do art. 280º do CPPT que das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
“Reserva-se, portanto, ao Supremo Tribunal Administrativo”, tal como ficou consignado no Acórdão deste Tribunal, de 29/09/2010, proc nº 266/10, “o papel de tribunal de revista, com intervenção reservada para os casos em que a matéria de facto controvertida no processo esteja estabilizada e apenas o direito se mantenha em discussão”.
Considera-se que as conclusões versam matéria exclusivamente de direito se “resumirem a sua divergência com o decido à interpretação ou aplicação da lei ou à solução dada a qualquer questão jurídica” e versam matéria de facto se “manifestarem divergência com a questão factual”. Esta divergência pode assumir, designadamente, as seguintes variantes: “quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devem retirar dos mesmo” (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., Áreas Editora, 2011, p. 425). No mesmo sentido (cfr., entre outros, os Acórdão do STA, de 29/9/2010, procs. nº 266 e 446/2010). Mais recentemente, cfr., entre outros, o Acórdão do STA, de 8 de Fevereiro de 2012, proc. nº 1040/2011.).

2.1.2. Aplicando a jurisprudência referenciada ao caso em apreço, extrai-se que a Recorrente veio, no presente recurso, questionar os juízos de apreciação da prova feitos pelo tribunal recorrido, no que respeita à verificação do preenchimento dos requisitos exigidos para a aplicação do regime especial previsto nos arts. 67º e ss. do Código de IRC, quer por enunciar factos não contemplados no probatório da sentença, dos quais se pretende extrair consequências jurídicas, quer por manifestar divergência com as ilações que se devem retirar dos documentos apresentados.
Vejamos.
O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial apresentada pela A………, SA., contra o acto de liquidação de imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e respectivos juros compensatórios no montante global de € 5.827.549,46.
Para tanto, ponderou o Mmº Juiz “a quo”, entre o mais, que:
· “(…) a operação aqui em causa nunca poderia beneficiar do regime de neutralidade fiscal constante dos arts. 67º e seguintes do CIRC, uma vez que este regime apenas é aplicável às operações taxativamente contempladas no referido artigo 67º;
· (…) a intenção do legislador em delimitar a aplicação deste regime unicamente às operações aí expressamente referidas, resulta claramente do teor do nº 7 deste artigo, ao dizer que “O regime especial estatuído na presente subsecção aplica-se às operações de fusão e cisão de sociedades e de entrada de activos, tal como definidas nos nºs 1 a 3 (…)”.
· Acresce que o regime de neutralidade fiscal em apreço configura um benefício fiscal, como aliás já foi expressamente qualificado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Ac. de 17 de Julho de 1997, Processo C-28/95, Leur-Bloem, nº 36), na medida em que estabelece uma excepção, mais ou menos vantajosa para os contribuintes, aos regime regra de tributação e, nessa medida, tendo em conta o disposto no art. 9º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), não é susceptível de integração analógica;
· Exactamente porque o regime da neutralidade fiscal só pode aceitar-se se a operação se integrar numa lógica de neutralidade. E, como se evidencia pelos números, no caso, a operação não assumiu foros de neutralidade.
· (…) forçoso é concluir que a operação em causa não pode beneficiar da neutralidade fiscal pela simples razão de à cisão lhe falecer o pressuposto legal de atribuição aos sócios de partes representativas de capital social das sociedades beneficiárias;
· Entendemos também que a transferência dos elementos patrimoniais para a esfera das empresas beneficiárias gerou variações patrimoniais positivas que, nos termos do art. 21º do CIRC, não podem deixar de se reflectir nos respectivos lucros tributáveis.”
Em suma, para o Tribunal recorrido, “a operação em causa não pode beneficiar do benefício da neutralidade fiscal pela simples razão de à cisão em causa lhe falecer o pressuposto legal de atribuição aos sócios de partes representativas de capital social das sociedades beneficiárias. E se a operação não cabe no dito regime especial, há-de cair então no regime geral do art. 43 do CIRC”. Além do exposto, entendeu também o Tribunal “a quo” “que a transferência dos elementos patrimoniais para a esfera das empresas beneficiárias gerou variações patrimoniais positivas que, nos termos do art. 21° do CIRC, não podem deixar de se reflectir nos respectivos lucros tributáveis”.

Contra este entendimento se insurge a recorrente alegando, em síntese, que:
· “(…) a decisão de que vem interposto o presente recurso merece censura, imputando-lhe um erro de julgamento de facto ou de direito (ponto D das Conclusões).
· (…) o tribunal a quo faz tábua rasa de toda a matéria de facto de que foi feita prova — quer testemunhal quer documental — nas instâncias próprias (ponto E das Conclusões)”.
· O tribunal a quo (…)” revela “perturbadora incompreensão da matéria de facto e, bem assim e em consequência, numa inevitável má leitura dos argumentos de direito aduzidos” (ponto F das Conclusões).
· O tribunal recorrido conclui pelo não cumprimento de todos os requisitos exigidos para a aplicação do regime especial previsto nos art.ºs 67.° e ss. do Código do IRC, porque “tem subjacente uma errada percepção da matéria factual e errónea aplicação do direito, pelo que as liquidações adicionais em que se projectou são manifestamente ilegais e a sentença recorrida ilegal na percepção que tem do direito mobilizável” (Pontos G e H das Conclusões).
· “Falta, é certo, na operação de cisão-fusão em causa nos presentes autos, a entrega de acções da sociedade beneficiária (A………) ao sócio (C………) da sociedade contribuidora (B………)” (ponto M das Conclusões).
· “Mas percebe-se porquê: é que o sócio (C………) que detinha a 100% a sociedade contribuidora (B………) era exactamente o mesmo que detinha integralmente as participações no capital da sociedade beneficiária (A………), o que tomou obviamente dispensável, por exemplo, a realização de aumentos de capital com emissão de novas acções” (ponto N das Conclusões).
· “Não se verificou, naquela situação, a necessidade de operar com qualquer razão de troca, uma vez que, quer a sociedade contribuidora (B………), quer a sociedade beneficiária dispunham do mesmo accionista, com exclusão de quaisquer outros” (ponto O das Conclusões).
· “(…) subjacente à tese propugnada pela Administração fiscal e permitida pelo tribunal de primeira instância, está uma violação clamorosa dos princípios da capacidade contributiva e da proporcionalidade, pois numa operação em que não há, demonstradamente, qualquer criação de valor, em que C……… mantém na sua esfera, em todos os momentos, os mesmos activos (nem mais nem menos) com os mesmos custos de aquisição originários, é manifestamente desproporcionado exigir correcções que ultrapassam os € 15.000.000,00. (ponto X das Conclusões).

Da análise das respectivas conclusões, uma vez que são estas as relevantes para aferir do objecto e âmbito do presente recurso [cfr. o art. 684º, nº3, do CPC, e o art. 2º, alínea e) do CPPT)], é que se há-de concluir se as razões da sua divergência com o decidido versam matéria exclusivamente de direito.
No caso sub judice, verifica-se que, para além de as conclusões M, N e O enunciarem factos não contemplados no probatório da sentença, como refere o douto Parecer do Ministério Público, nas Conclusões vazadas designadamente nos pontos D, E, F, G, H, e X, a recorrente diverge das ilações que o Meritíssimo Juiz “a quo” retirou da factualidade apresentada pela recorrente para demonstração dos requisitos previstos nos arts. 67º ss. do CIRC.
Realce-se que nas situações apontadas nos pontos E e D das Conclusões, a recorrente assume clara discordância com o decidido pelo Tribunal recorrido em sede de matéria de facto pondo em causa os juízos de apreciação da prova a partir dos factos provados e não provados, pretendendo daí retirar apoio para a fundamentação de direito. Com efeito, a consideração dos factos por si enunciada poderia, em seu entender, ser determinante para a procedência do recurso.
Realce-se que o Tribunal recorrido concluiu ainda “que a transferência dos elementos patrimoniais para a esfera das empresas beneficiárias gerou variações patrimoniais positivas que, nos termos do art. 21° do CIRC, não podem deixar de se reflectir nos respectivos lucros tributáveis”. Ora, contra esta ilação se insurge de forma directa e patente a recorrente, no ponto X das Conclusões, sendo que, tal como ficou consignado no Acórdão do STA, de 20/12/2011, proc 0865/2011, “De acordo com o nº 3 do art. 68º do CIRC, em vigor à data dos factos, é condição da aplicação do regime especial de neutralidade fiscal que os elementos patrimoniais objecto de transferência mantenham os mesmos valores que tinham na sociedade fundida ou cindida antes da realização da respectiva operação...”
Constitui jurisprudência do STA consignada, entre outros, no Acórdão de 21/4/2010, proc nº 189/10, que “se as conclusões das suas alegações de recurso o recorrente manifesta clara discordância com o decidido no que respeita aos juízos de apreciação da prova efectuados pelo Tribunal recorrido, assumindo uma clara divergência nas ilações de facto retiradas do probatório, o recurso versa também matéria de facto.” Neste contexto, o recurso não tem fundamento, exclusivamente, em matéria de direito, suscitando-se igualmente questões em matéria de facto, o que faz com que não seja este o Tribunal competente, em razão da hierarquia, para dele conhecer, mas sim o TCAN.

Pelo exposto, procede, desta forma, a excepção da incompetência em razão da hierarquia deste STA para conhecer do objecto do recurso suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal.

III-DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em julgar este Supremo Tribunal incompetente, em razão da hierarquia, indicando-se, nos termos do art. 18º, nº3, do CPPT, como Tribunal que se considera competente o Tribunal Central Administrativo Norte, para o qual se ordena a remessa do processo, em conformidade com o solicitado pela recorrente.

Custas pela Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 2 (duas) UC.

Lisboa, 19 de Abril de 2012. - Fernanda Maças (relatora) - Casimiro Gonçalves - Lino Ribeiro.




Nuno Carvalho
Aluno nº 17913

Sem comentários:

Enviar um comentário