terça-feira, 22 de maio de 2012

Algumas considerações sobre a acção popular administrativa

          Algumas considerações sobre a acção popular administrativa





          Eis um dos pontos que suscita maior interesse e também maior controvérsia na esfera do contencioso administrativo português. Mergulhando directamente no tema, há que salientar a relevância deste mecanismo que é o direito de acção popular, como instrumento, através do qual os cidadãos, indiscriminadamente considerados, dão seguimento às motivações ditadas pela sua consciência cívica e política, quer seja tendo em vista à restauração da legalidade objectiva, quer seja na tutela de interesses difusos.

          Com raízes, embora noutros moldes, na nossa herança jurídica romana e, desde sempre, presente na história constitucional portuguesa, a figura da acção popular clássica, prevista no 52º-3b) CRP - que visa a restauração da legalidade objectiva - viu o seu conteúdo ser definitavamente fixado na Constituição da República Portuguesa de 1976. Contudo, apenas com a Revisão Constitucional de 1989 é que foi, ao lado daquela, consagrada no 52º-3a) CRP a ''acção popular administrativa'', que tem em vista a tutela de interesses difusos. É sobre esta acção que nos iremos debruçar. De realçar que, porém, só em 1995, este mecanismo obteve concretização legislativa, mediante a aprovação da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto - Lei da Acção Popular (LAP). Até então, alguma doutrina defendeu a existência de uma inconstitucionalidade por omissão.

          Os interesses difusos, que regem este tipo de intervenção, vêm previstos na alínea a) do nº3 do artigo 52º. São eles: a saúde pública; os direitos dos consumidores; a qualidade de vida; a preservação do ambiente e do património cultural. Este elenco é alargado ainda por via do 9º-2 CPTA, e do 1º-2 da Lei nº 83/95, que aí acrescenta bens como o urbanismo, o ordenamento do território e o domínio público, que também ficam sob a alçada da acção popular administrativa. De referir que a alusão a estes bens e valores constitucionalmente protegidos é feita a título exemplificativo, como o comprova o advérbio ''nomeadamente'' que os precede. Poderão, eventualmente, existir outros bens e valores dessa natureza, mas a sua aferição terá sempre de ser feita considerando o seu reflexo comunitário imediato.

          Mas importa esclarecer, antes de mais, o que se entende por interesses difusos? Esta é uma figura que se reconduz aos bens e valores constitucionalmente protegidos supra mencionados, na perspectiva que lhes é dada pelos seus ''beneficiários'', ou seja, são interesses que correspondem a um ou vários bens sobre os quais toda a comunidade tem interesse em garantir e preservar. O binómio que encerra esta expressão desdobra-se, por um lado, num interesse transversal a todos os membros da sociedade enquanto tal e, portanto, insusceptível de apropriação por um sujeito; por outro lado, assume também uma relevância individual, quanto a cada um dos membros que constitui essa comunidade, aos quais é reconhecido o direito de actuar, indistintamente, na defesa desses interesses. Esta dupla dimensão supra-individual e individual destes interesses difusos significa que eles são direitos que pertencem ''a todos em geral e a ninguém em particular''.

          Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, o interesse difuso é ''a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada''.

          Chama-se a atenção para a existência de diferentes realidades, em que se consubstancia o fenómeno dos interesses difusos, dando, dessa forma, origem a algumas classificações doutrinárias, provenientes do direito brasileiro, às quais não releva, porém, aqui a sua análise, uma vez que a distinção entre interesse individual, difuso, colectivo e individual homogéneo, ainda não é totalmente clara e consensual; e também porque a solução judicial é idêntica para qualquer das situações, independentemente do interesse que esteja em causa.

          Visto o objecto da acção popular, é agora altura de analisar a questão da legitimidade popular. Em disposições como o 52º-3 CRP, o 9º-2 CPTA e o 2º LAP, a lei reconhece a legitimidade popular subjectiva activa a qualquer pessoa, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa, às autarquias locais e ao Ministério Público. Temos, assim, consagrado, um leque bastante alargado de actores populares, aos quais é conferida, no pensar de Mário Esteves de Oliveira e de Rodrigo Esteves de Oliveira, ''uma legitimidade impessoal ou social''. A acção popular, tida, nestes moldes, no dizer de Nicolau Santos Silva, como um instrumento fundamental de cidadania, visa assim estabelecer-se como uma forma de atribuição de legitimidade ao povo, quando estejam em causa determinados bens e valores, não sendo, desta maneira, considerada como um meio processual específico. Assim, quando a controvérsia diga respeito a um daqueles bens ou valores constitucionalmente protegidos, é possível, a qualquer indivíduo, propor e intervir em processo administrativo principal e cautelar, independentemente de ter um interesse pessoal na demanda. O termo ''independentemente'' a que recorre o 9º-2 CPTA é objecto de diferentes interpretações na doutrina. Por um lado, há quem defenda que a única situação em que se torna concebível recorrer à acção popular é aquela em que não há nenhum interesse particular ou pessoal na demanda, configurando-se aqui tal expressão como falaciosa. Por outro lado, e em sentido contrário, vem pronunciar-se outro sector da doutrina, nomeadamente Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, que advogam ser possível, àqueles que tenham interesse pessoal na demanda, recorrer à acção popular, ainda que estejam em jogo interesses difusos.

          Questão diversa é a de apurar que poderes são do foro do Ministério Público, no âmbito das acções populares. O MP não figura entre os titulares do direito de acção que a LAP prevê. Como sustenta Rui Machete, ''o Ministério Público é um elemento do Estado-Administração, e não um elemento da sociedade civil, a quem pertence esta defesa dos interesses difusos''. Contudo, e no âmbito do poder de fiscalização que lhe assiste, por via do 16º LAP, o MP pode, de acordo com o nº 3, substituir-se, em certos casos, ao autor. É esta, assim, uma intervenção indirecta do MP, condicionada por imperativos de fiscalização da legalidade.

          Por fim, vale a pena salientar o papel de relevo que estas acções têm vindo a assumir, especialmente em temas relacionados com o ambiente. Aí, dada a sua actividade particularmente frutífera, podemos destacar, entre outros casos, a acção popular instaurada no âmbito do caso do Túnel do Marquês, da autoria do cidadão José Sá Fernandes. O advogado requereu, em 2004, a suspensão da obra de construção do referido túnel, invocando, nomeadamente, a inexistência de um projecto de execução que houvesse sido aprovado pela autarquia lisboeta, e, ainda, a inexistência de qualquer avaliação de impacte ambiental.




          Bibliografia:




          Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos



          Nuno Sérgio Marques Antunes, O direito de acção popular no contencioso administrativo português



          Rodrigo Esteves de Oliveira e Mário Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Volume I




          Rodrigo de Sousa Mendes, subturma 2, nº 16849

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