quinta-feira, 12 de abril de 2012

Responsabilidade civil extracontratual: Privilegio de foro?

Responsabilidade civil extracontratual


de pessoas coletivas no exercício da função administrativa:

Privilégio de foro?



Os alvores do Direito Administrativo

1. Em 8 de Fevereiro de 1873, o Tribunal de Conflitos Francês torna público o acórdão n.º 12 que decide o conflito negativo de jurisdição do caso Agnès Blanco a favor da jurisdição administrativa, assim marcando, a Justiça Administrativa, ainda na fase embrionária do juiz-administrador, com o ferrete da desigualdade de posições do cidadão face ao Estado.

2. Recordemos sumariamente o caso Blanco: Agnès, de 5 anos foi atropelada, em 3 de Novembro de 1871, por um vagão da Empresa Pública de Tabacos de Bordéus, de que resultaram lesões graves e irreversíveis; a ação cível de responsabilidade civil extracontratual contra o Perfeito de Bordéus e os trabalhadores da empresa envolvidos, em solidariedade, intentada no Tribunal Civil de Bordéus e contestada por exceção de incompetência absoluta de jurisdição. O Tribunal de Conflitos resolve o conflito negativo a favor da jurisdição administrativa. A ação é julgada pelo Conselho de Estado que, em 19 de Maio de 1874, atribuiu uma pensão vitalícia à vítima.

3. Mais do que a justiça material dada ao caso Àgnes, o que é relevante é a afirmação dum foro próprio decorrente do estatuto do Estado e de outras pessoas coletivas públicas, alargado a pessoas coletivas de direito privado com prerrogativas de poder público (que denominarei PCP), assente na presunção absoluta do superior interesse público da sua atividade: “Considérant que la responsabilité, qui peut incomber à l’Etat, …, ne peut être régie par les principes qui sont établis dans le Code civil, pour les rapports de particulier à particulier … Que cette responsabilité … a ses règles spéciales qui varient suivant les besoins du service et la nécessité de concilier les droits de l’Etat avec les droits privés.”

Responsabilidade extracontratual das PCP em Portugal

4. A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 22, estatui a responsabilidade civil, solidária, das PCP por atos ou omissões dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, sendo tais autores – se funcionários ou agentes - passíveis de responsabilidade civil, criminal e disciplinar (cfr. n.º 1 do artigo 271), salvo se a atuação lesiva não for criminosa e tiver ocorrido no cumprimento sob reclamação ou reconfirmação escrita de ordens ou instruções (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 271).

5. Estabelecido constitucionalmente o direito de responsabilização direta e solidária das PCP, o acesso ao direito (cfr. art.º 20 da CRP) exige correspondente ação tutelar numa das sedes jurisdicionais previstas no art.º 209 da CRP.

6. Deixando de lado a polémica hoje ultrapassada sobre a abrangência dos atos susceptíveis de gerar responsabilidade – uma primeira fase, limitada á função administrativa e, posteriormente, alargada à função legislativa e jurisdicional – limitar-nos-emos à responsabilidade civil extracontratual.

7. Os fundamentos do Acórdão 5/2005/T. Const. permitem-nos uma breve retrospetiva da nossa história da responsabilidade civil extracontratual: a versão originária o Código Civil de 1867 (artigos 2399 e 2400) consagrava o princípio da irresponsabilidade do Estado e dos seus funcionários pelas perdas e danos que causassem no desempenho das obrigações que lhe fossem impostas por lei, exceto se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, caso em que responderiam pessoalmente como qualquer cidadão; para os atos de gestão privada, entendia-se que eles eram suscetíveis de gerar responsabilidade. Posteriormente, na reforma de 1930, o artigo 2403 foi reformulado para prever a responsabilidade solidária das entidades públicas, nos casos em que os seus empregados públicos respondessem por danos. O Código Administrativo de 1936/1940 prevê a responsabilidade civil das autarquias locais por atos praticados com ofensa de lei pelos seus órgãos e agentes

8. Em 1967, o Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, veio regular a responsabilidade civil extracontratual na gestão pública, complementando idêntica regulação das PCP na gestão privada (i.e. a atuação despojada de poderes de autoridade) prevista no artigo 501 do Código Civil. Consistentemente, o então ETAF-Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, limitava a jurisdição administrativa relativa às acções sobre responsabilidade civil das PCP apenas a atos de gestão pública (cfr. alínea h do artigo 51 da Lei 129/84, de 27 de Abril). Assim, a distinção do regime substantivo refletia-se na jurisdição competente para o julgamento das ações sobre responsabilidade civil: administrativa nas consequências da gestão pública; judicial nas consequências da gestão privada. Tal distinção foi fonte de intensa polémica doutrinal e conflitos de jurisdição com inúmeras intervenções do Tribunal de Conflitos. Nos casos difíceis, em que a distinção era duvidosa, valia a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.

9. Entretanto em 2004, entram em vigência os diplomas da reforma de 2002: ETAF-Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei nº 13/2002, de 19 de Setembro) e CPTA-Código de Processo nos Tribunais Administrativos. O enunciado normativo das al. g) e h) do n.º 1 do art.º 4 do novo ETAF deixa de atender à distinção entre gestão privada e pública para as ações sobre responsabilidade civil extracontratual das PCP – ações administrativas comuns reguladas nos artigos 37 e seguintes do CPTA.

10. A doutrina é consensual quanto à competência dos tribunais administrativos para “apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de … pessoas colectivas de direito público” (Mário A. Almeida, “O novo regime do processo nos tribunais administrativos” pg. 99

11. Face à formulação normativa e consenso doutrinário, a jurisprudência dominante no Tribunal de Conflitos considerou deixar de “fazer sentido, no contexto das acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidades públicas (contrariamente ao que sucedia no regime jurídico do ETAF anterior, o de 1984), distinguir entre actos de gestão privada e actos de gestão pública como elemento desencadeador da responsabilidade civil pois para todas as acções neles suportadas são competentes os tribunais administrativos” (Processo n.º 012/09 de 08-10-2009).

Os equívocos do novo RRCEE

12. Mas a nova lei de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE, Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que alarga o âmbito subjetivo a entidades privadas no exercício de prerrogativas de autoridade e o âmbito objetivo ao exercício de qualquer função do Estado) faz reviver a polémica ao limitar (aparentemente) a função administrativa apenas às “acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (Cfr. n.º 2 do artigo 1).

13. Para J. Caupers “a situação da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade se mantém, com todas as dificuldades inerentes : é que a nova lei se aplica apenas a acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Dúvidas não existem quanto a este ponto: é precisamente por isso que o artigo 501.º do Código Civil não foi revogado pelo novo diploma legal.”.

14. Pelo contrário, Vasco P. Silva, numa tese recente (na 2.ª edição de “O contencioso administrativo no divã da psicanálise” p. 237, ainda critica o equívoco originado pela Lei 67/2007 “por permitir a manutenção duma lógica esquizofrénica de tratamento da responsabilidade administrativa”), conjuga a parte final do referido preceito ("reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo"), que considera alternativa à parte anterior (esta relativa à gestão pública) com o n.º 5 do artigo 2 do CPA - Código de Procedimento Administrativo (“Os princípios gerais da actividade administrativa … e as normas que concretizam preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer actuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada” para abranger também a gestão privada”. Assim, haveria unidade, quer substantiva, quer adjetiva, à regulação da responsabilidade civil extracontratual das PCP.

15. O que equivale a dizer que a responsabilidade civil extracontratual de PCP é sempre uma relação jurídica administrativa, porque só relações desta natureza caiem na jurisdição dos tribunais administrativos (Cfr. n.º 3 do art.º 212 da CRP), e a sua regulação substantiva e adjetiva é agora efetuada por leis próprias.

16. “Coitadinha da Agnès, cuja história, …,não pára de encontrar mil e uma formas, de há séculos a esta parte, para se repetir!” (V.P Silva, “É sempre a mesma cantiga” – O contencioso da responsabilidade civil pública”, RPGMJF, ano 1, n. 1, p. 61-87. 2011.)

João Ferreira Dias

N.º 17863, 4.º Ano, Noite

Sem comentários:

Enviar um comentário